Molar e molecular IV


Voltemos à questão do cruzamento molar/molecular de Félix Guattari. Guattari diz que a “matéria é corpuscular e ondulatória, ao mesmo tempo”[1] ([2]). É  a tese do Anti-Édipo, algo da ordem molecular (desejo) se passa no meio das estruturas políticas que pertencem às formações molares, mas não só nesse caso, o desejo escorre por entre as coisas. Enquanto fluxo que escorre e é interceptado por um órgãos, se encontra em nível molecular, sensações subcorticais? Não só as lutas sociais, mas as lutas individuais são, ao mesmo tempo molar e molecular. As lutas esquizofrênicas e os delírios paranoicos não são menos molares do que moleculares. 
Os milhares de orifícios na pele de Schereber, são a mistura desses graus de intensidades, de linhas de um antigo mapa que cruzam com linhas lisas de sensações puras. A linguagem e as formas não são suficientes para dar conta desse real molecular. O delírio surge como expressão, uma política de vida. 
Como não perceber o delírio como expressão de um excesso que o acervo da subjetividade não comporta? O inconsciente é maquínico, “simplesmente para sublinhar que está povoado não somete de imagem e de palavras, mas também de todas as espécies de maquinismos que o conduzem a produzir e reproduzir estas imagens e estas palavras”.[3] Molar/molecular é uma virada primeira da sínteses do indivíduos, forças cósmicas que se cristalizam nas formas.
Voltemos à divisão da primeira e da segunda tópica seguindo a física. O inconsciente é de dupla face, molecular e molar. “[... ] Micropsíquica ou micrológica e outra estatística e gregária?”.[4] O inconsciente está ligado à física, o corpo sem órgãos é a própria matéria, as intensidades e as linhas são o seu mapa intensivo. Então já não precisamos mais da noção de pulsão de morte. Chegamos no elemento da natureza que dobra e desdobra como na fita de Moebius. Somos ao mesmo tempo molar e molecular. Presos por uma lado às formações sociais de grupo, aos estratos: Édipo familiar. Por outro lado, determinados por forças do desejo. De Platão à Freud, o homem ou a razão humana, é prefigurado na imagem de um animal sem rédeas. 
A razão ou homem da razão está sob esse animal que não se domou. “Forças inextrincavelmente ligadas, sendo umas as forças elementares através das quais o inconsciente se representa, já sofrendo recalcamento e repressão de suas forças elementares produtivas”.[5] Quando há uma ruptura na forma – molar - é porque uma onda micrológica invadiu o sistema social. Da-se um nome errado para a espiritualidade quando se atribui  essa força aos fenômenos sociais de uma religião - como lembram Deleuze/Guattari em para além do vitalismo e do mecanicismo -,  e introduzirem um mecanicismo molecular em tudo, “as próprias coisas que supomos puramente espirituais não passam de rupturas de equilíbrio numa série de alavancas que são demasiados pequenas para serem percebidas ao microscópio”.[6].
O elemento mínimo é o molecular que faz a diferença para o plano de consistência das máquinas. É a mesma política, consistências molares e moleculares que se instauram umas em relação às outras. Essas relações se referem diretamente com processos primários que põe em jogo as formações dos processos secundários do consciente e do pré-consciênte, energia ligada e mecanismos de inibição contra fluxos livres. Guattari chama atenção para o fato de que, “essa relação geração/transformação, parece-me ser, no momento, um caso particular de relação molar/molecular”.[7] 
O que Guattari vem ressaltar é a existência de uma “[8]proto-subjetividade, aos agenciamentos vivos [...] microfísica de entidades elementares passivas”, ou seja, existe uma subjetividade inconsciente antes de haver a subjetividade por mecanismos de enunciação. Mesmo que os sujeitos se desloquem da casa para a escola, da escola para fábrica, ainda que, diante dos aparelhos de mass mídia  se reforce as linhas de segmentaridade dura, agenciamentos de enunciação semiótica e agenciamentos maquínicos reais não permitem fundar um sistema “transcendente de lei que ‘cobriria’ o conjunto das leis e das singularidades”. Não mais uma subjetividade sob a palavra que define o mundo, tudo aquilo que define o formalismo transcendental é posto em relação à modos de subjetivação de natureza humana e/ou não-humana ao mesmo tempo. 
A “árvore da vida” ou o “livro-mundo” raízes do sentido não passam de uma ficão. Nenhuma referência transcendente pode suportar a velocidade dos agenciamentos que são de múltiplas ordens: biológicos, mentais, sociais, desde que sejam capazes de maquinar encontros de heterogêneos. Os biólogos nunca conseguirão fechar a conta da diversidade das espécies se elas estão em profusão rizomática. Os navios que atravessam os mares trazem nos lastros espécies de outros mares que se misturam nos oceanos do mundo inteiro, criando novas espécies. 
Somos todos efeitos de contágios, de vírus e bactérias. Eles mesmos são organismos em estado de emergência contínua. Ao mesmo tempo, somos misturas de corpos e ideias que percorrem o mundo. Somos matilhas moleculares que povoam desde o inconsciente e que se projeta no campo social. “Uma infinidade de agenciamentos criadores, sem intervenção de um Criador supremo, uma infinidade de componentes, de índices, de linhas de desterritorialização, de maquinismos proposicionais abstratos: tais são os objetos de um novo tipo de análise do inconsciente”.[9] A passagem por um vértice de subjetividade, supostamente homogênea, não garante um sujeito da subjetivação em ruptura com o cosmos.   




[1] GUATTARI, F./ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 1986, 127.
[2] A despeito da crítica (Sokal & Bricmont, 2010, pp. 155 – 160), não nos parece um equivoco ter sido citado um postulado da física quântica para referir-se aos termos. Deleuze/Guattari aplicam o modelo às lutas sociais. Digamos que o erro esteja na ausência de um aprofundamento na física, mas não na aplicação da verdade da física no campo das lutas política. Seguindo esse “método” bricoleur, nossos autores podem ter se equivocado em dados momentos. Assim demonstram Alan Sokal & Jean Bricmont em “Imposturas intelectuais”. Ao colherem pedaços da física, Deleuze/Guattari não foram suficientemente coerentes com àquele campo de conhecimento que inclui a física e a matemática. Entretanto, os dois cientistas, numa única frase esboçam uma defesa da dupla Deleuze/Guattari. Dizem: “certamente, Deleize e Guattari são livres para usar esses termos com outros sentidos: a ciência não possui o monopólio na utilização de palavras como ‘caos’, ‘limite’, ‘energia’ (pp. 155 – 156). Depois da brevíssima defesa, os autores serão implacaveis na crítica aos filósofos. Deles não escapam Lacan, Kristeva, Latour, Baudrillard, Virílio, dentre outros. Não desejo com isso sair em defesa de minha limitação nem da deles.
[3] GUATTARI, F. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise. Tr. Constança M. César e Lucy M. Césra. Campinas: Papirus, 1988, p. 10.
[4] DELEUZE, G./GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe, p. 336.
[5] DELEUZE, G./GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe, p. 374.
[6] DELEUZE, G./GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe, p. 338.
[7] GUATTARI, F. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise. Tr. Constança M. César e Lucy M. Césra. Campinas: Papirus, 1988, 150.
[8] Idem.
[9] Idem, p. 154.

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