O DEVIR-ANIMAL NA FOBIA DO PEQUENO HANS
Deleuze observa que “a criança não para de dizer o que faz ou tenta
fazer: explora os meios, por trajetos dinâmicos, e traça o mapa correspondente”.[1]
Este é o desejo mais profundo de uma criança: entrar no meio das coisas, do
“trajeto que percorrem” e na “subjetividade do próprio meio, uma vez que este
se reflete naqueles que o percorrem”.[2]
A criança é barrada em seu desejo, em suas tentativas de estabelecer
agenciamentos maquínicos através de desterritorializações: elas querem explorar
a rua em conexão com as outras crianças, entre os sexos, com os animais.
No caso do pequeno Hans, todas essas tentativas foram frustradas. Ainda
assim, restava um último passo: escapar pela via do devir-animal, na fobia
relacionada ao cavalo. Quando o desejo fica reterritorializado nas figuras
parentais, esses não são exatamente agentes de desejo, não há aqui uma
revolução. A família aqui constituída é um agente representante da lei, um
território particular do Estado (celula matter).
O campo de ação não constitui um funcionamento maquínico, mas apenas
funções estruturais ligadas à Função-Mãe e à Função-Pai. Para as crianças, os
pais só têm validade enquanto meios que elas percorram. Enquanto meios, os pais
têm suas “qualidades, suas potências, cujo mapa elas traçam e percorrem”. “Eles
só tomam a forma pessoal e parental como representantes de um meio noutro meio.”[3]
Ocorre que os pais se desfazem dessa função, que serve apenas para a
criança. Nesse momento, Hans manifesta temor de sair à rua porque um cavalo
poderia mordê-lo. Os pais deixaram de ser um meio que se oferece no mapa para
chegar à rua e ao cavalo. Um cavalo nesse momento não é uma homologia (ou
analogia), não há nada a interpretar no cavalo. Um cavalo é um elemento
material que se determina pelo agenciamento-rua (cavalo-ônibus-rua-carga). Há
uma lista infindável de afetos correlacionados ao cavalo: estribo, freio,
força, grande faz-pipi, grande traseiro de fazer cocô, morder, puxar carga
pesada, chicotadas, espernear, cair, dar galopes etc. Hans também é uma homenagem
a Espinosa – ele avalia cada afeto, com seus limiares mínimos e máximos. Ao
modo deleuziano de ler Espinosa, ele elabora uma lista de afetos.
Há por exemplo, grandes diferenças entre
um cavalo de lavoura ou de tiro, e um cavalo de corrida, ente um boi e um
cavalo de lavoura. É porque o cavalo de corrida e o de lavoura não possuem os
mesmos afectos nem o mesmo poder de
ser afetado; o cavalo de lavoura tem antes mais afectos em comum com o boi.[4]
Conforme Deleuze, o afecto em Espinosa é a “variação contínua da
força de existir”; o cavalo não pode ser representativo porque é atravessado
por afectos o tempo todo. “O afecto é constituído pela transição
vivida ou pela passagem vivida de um grau de perfeição a outro, na medida em
que essa passagem é determinada pelas ideias; porém, em si mesmo, ele não
consiste em uma ideia; ele constitui o afecto.”[5]
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