A potência política dos não filósofos
Os autores foram buscar nos não filósofos o
devir-filosófico que se aloja neles; são processos de singularização que se
encontram espalhados na literatura, na arte, na música e no cinema. O que
justifica a proximidade com autores que não são filósofos por formação: na
literatura e no teatro, Kafka, Virginia Wolf, Scott Fitzgerald, Antonin Artaud,
Proust, Lewis Carrol, Carmelo Bene, Herman Melville, Sacher-Masoch, Samuel
Beckett. Na pintura, Francis Bacon e outros de campos distintos, como Carlos
Castañeda e Pierre Clastres. Deleuze/Guattari se utilizam desses outros para
dizer na filosofia o que aqueles estão em vias de dizer, mas que não disseram
da maneira que o filósofo gostaria de ter dito.
Mas, ao
mesmo tempo, Deleuze/Guattari querem mostrar que a filosofia não está acima dos
conhecimentos, mas pode caminhar com outros saberes. Há domínios que não são
próprios da filosofia. Mas muitos conceitos filosóficos de Deleuze/Guattari têm
como fonte de inspiração muitos outros planos de criação que não pertencem exatamente
à filosofia. São os aliados ou intercessores da filosofia. Deleuze toma
emprestado da literatura, da pintura, do teatro ou do cinema uma ideia para agregar ao seu ponto de
vista. Como friza Roberto Machado, “Deleuze incorpora conceitos ou transforma em
conceitos elementos não conceituais, mas ao proceder à repetição da diferença
como uma maneira de pensar, está sempre criando a diferença”[1].
Com Félix Guattari, Deleuze se apropria de uma noção mística do ovo dogon e
cola ao que Artaud definia como corpo coador, ou corpo sem órgãos. Mas o que
está em jogo nesse caso, são as zonas de intensidade que o atravessam. Os
pedaços vêem do toda parte, do misticismo de uma tribo indígena, passando pelo
refinado pensamento de Espinosa até culminar com a experimentação mais radical
de Artaud. Um dadaísmo filosófico, por isso, filhos monstruosos de múltiplas
enrabadas. Se esse é um método de fazer filosofia, já é também uma prática de
“como fazer para si um corpo sem órgãos”. É preciso captar a força que se
encontra alojada lá onde eles foram buscar o pedaço que faltava, mas para que
assim aconteça, é preciso que o corpo-mente se permita afetar pelo outro corpo.
Assim descreve Jorge Vasconcellos em seu artigo “Foucault, Deleuze e a pintura”
se referindo à pintura de Francis Bacon:
A sensação em plena
carne. A sensação plena de carne. A sensação que é plena de intensidade,
produtora de um novo corpo, inventora do corpo intenso. Esses estados intensos
instauram uma forma nova de corporeidade. Um corpo que ultrapassa o aparelho
sensório motor da espacialidade habitual e busca o tempo, o puro tempo ou o
tempo puro. Um corpo que acaba por abolir seus próprios órgãos: um corpo sem
órgãos. O organismo aprisiona a vida, e é preciso propor à vida, uma pura
intensidade.[2]
Segundo Deleuze, Bacon joga com “uma violência
cômica, em que os órgãos do corpo são próteses”.[3]
O corpo se encontra sob tensão, corpo sob a ação do acontecimento para além das
forças do corpo. O corpo é sem órgãos no sentido em que não são os órgãos que
comandam o corpo, ele mesmo, enquanto corpo se encontra em estado de fuga. O
que leva esse corpo ao interesse da filosofia é justamente o movimento. Um
corpo sob a ação do movimento, é um corpo que dança, um corpo dançante que não
poderia ser se não se desorganizasse em prol da velocidade infinita que lhe
chega. Então a pintura de Bacon tem uma potência que interessa a filosofia. Os
corpos de Bacon saltam de um plano branco e liso sob o efeito das sombras num
ir e vir contínuo desde a desordem. Mas como entender precisamente essa
apropriação? O que está lá na pintura dos corpos de Bacon é precisamente o fio
condutor da velocidade infinita que opera como condição de uma consistência
cuja dissolução não pára de promover. As figuras precisam se contrair, se
dilatar, se achatar para dar conta do infinito da velocidade que se confronta
com o corpo. É como se a imagem do mundo fosse sintetizada numa forma
bidimensional, onde caberia o infinito de um lado, passando por um síntese
orgânica ao meio, e abrindo-se na outra extremidade ao infinito que se
desdobra. Um corpo é uma síntese de passagem, para que seja assim, um corpo
precisa ser objeto de dobra e desdobra. Bacon sabe fazer isso. “Todo o corpo é
percorrido por um movimento intenso. Movimento disformemente disforme, que
remete, a cada instante a imagem real ao corpo, para constituir a Figura”.[4]
O corpo é figura para deixar de ser estrutura, ele é material da figura. Bacon
não segue a lógica estrutural que se organiza o rosto. Bacon pinta cabeças e
não rostos, cabeças que se dissipam na sombra onde o rosto foge. “Em vez de
correspondências formais, a pintura de Bacon constitui uma zona de indiscernibilidade, de indecidibilidade entre o homem e o
animal. O homem se torna animal, mas não sem que o animal se torne ao mesmo
tempo”[5],
ao modo místico de Castañeda, espírito, espírito do homem, espírito físico do
homem...[6]”
Por essas razões, toma-se a pintura de
Francis Bacon pelo lado de sua intensidade que, tomamos como potência política.
[1] Roberto Machado In: DELEUZE,
G. Sobre o teatro: um manifesto de menos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 11.
[2] Jorge
Vasconcellos In: VASCONCELLOS, J./CASTELO, Branco, G. Arte, vida e política: ensaios sobre Foucault e
Deleuze. Rio de Janeiro: Edições LCV/SR3/UERJ, 2010, p. 97.
[3]
DELEUZE, G. Francis
Bacon: lógica da sensação. Tr. Aurélio G. Neto, Bruno L. Rezende, Ovídio de
Abreu, Paulo G. de Albuquerque e Thiago S. Thenudo. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007, p. 22.
[4]
Idem, p. 27.
[5] Idem, Idem, p. 29.
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