AS MÁQUINAS DE GUERRA CONTRA OS APARELHOS DE CAPTURA DO ESTADO
Entende-se por aparelhos de captura as armas do Estado, e não as
máquinas de guerra, as quais são nômades. O Estado se articula com aparelhos de
captura. Quando o Estado se utiliza de armas de guerra é de outra coisa que ele
se utiliza. O Estado se apropria da máquina de guerra e faz uma perversão de seus
princípios nômades.
A máquina social da sociedade primitiva – sociedade sem Estado – é uma
máquina de guerra nos termos do Platô de número 1227 – Tratado de nomadologia: a máquina de guerra se
caracteriza pelo elemento que causa fragmentação contínua do espaço social,
impedindo a formação de grandes aglomerados populacionais e extensas redes de
troca que acabam propiciando movimentos de centralização política.
É o que mantém a lógica da multiplicidade, a possibilidade de cada
comunidade diferenciar-se das demais, resistindo à sedução da unidade. É nesse
sentido que Deleuze/Guattari elaboram, em consonância com o pensamento de
Clastres, o conceito de “máquina de guerra”, diagrama de forças capaz de
impedir a cristalização de unidades políticas e a realização da forma-Estado,
que transcenderia o tecido das relações sociais.[1] A guerra a que se refere Clastres não é o
momento da batalha, mas sim, nesses termos, uma disposição à segmentaridade de
tipo flexível, à inibição de poderes estáveis.
O último volume de Mil Platôs aborda a unidade política de Capitalismo
e esquizofrenia. Três dos platôs aí reunidos (1227. Tratado de nomadologia:
a máquina de guerra; 7000 a.C. Aparelho de captura; 1440. O liso e o estriado)
definem a máquina de guerra e o aparelho de captura do Estado, bem como a
guerra nômade propriamente dita, guerra ou guerrilha sem derramamento de
sangue.
No texto acima, os autores, com base em Dumézil, definem o aparato de
captura, poder mágico do sacerdote de um lado, poder político-militar do déspota
de outro. São as duas cabeças do Estado. “A máquina de guerra é exterior ao
Estado” em que sentido? A máquina de guerra não tem por objeto a guerra.
Clastres demonstrou que determinadas sociedades nômades não podem conviver com
a presença da forma-Estado. Ele desmente as teses evolucionistas que afirmam
que essas sociedades estariam no nível primitivo da evolução, e que ainda
chegariam ao status de civilidade com a chegada do Estado.
Deleuze/Guattari demonstraram no Anti-Édipo que o Estado não se
desenvolve progressivamente. Juntando às teses de Clastres, os autores dizem,
por isso, que nem tudo é “Estado, justamente porque houve Estado sempre e por
toda parte”.[2] Da mesma forma que os nômades não
precedem os sedentários, eles sempre existiram. Na construção das muralhas da
China, eles sempre estiveram entrando e saindo sem desejarem o Estado. Política
nômade contra aparato de captura do Estado: “(...) o nomadismo é um movimento,
um devir que afeta os sedentários, assim como a sedentarização é uma parada que
fixa os nômades”.[3]
No sentido de impor um movimento constante, de introduzir ameaças,
velocidades e desvios, é que os nômades são considerados, em sua lógica, uma arma
de guerra. A arma de guerra está para o Estado assim como a pulsão de morte
está para a pulsão de autopreservação: ameaça de demolição contra a
estabilidade das formas fixas. Nomadizar é entrar em guerra contra os aparelhos
de captura estatal. “É nessas condições que os nômades inventam a máquina de
guerra, como aquilo que ocupa ou preenche o espaço nômade e se opõe às cidades
e ao Estado que ela tende a abolir.”[4]
Essa é propriamente a guerra sem derramamento de sangue, “pelo menos
quando se remete à máquina de guerra”. A desestabilização não é programada no
interior de um Cerra Maestra – esse tipo de guerrilha com mortes visa à
formação de outro Estado despótico, muito embora eles adotem as estratégias de
“ataque” nômades. Mas o nomadismo, embora aponte suas armas de guerra contra o
aparelho Estado, nunca visa à formação de outro Estado. “A máquina de guerra,
nesse sentido, é a invenção de uma organização nômade original que se volta
contra o Estado”,[5] sem desejá-lo. Daí dizer-se que uma
máquina de guerra não é o mesmo que aparelho de Estado; a máquina de guerra não
pertence ao Estado. Na verdade, o Estado faz uma apropriação indevida da
máquina de guerra.
[1] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. “1227-Traité de nomadologie: la machine de guerre”. In: Milles plateaux: capitalisme
et schizophrénie 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980.
[2]
DELEUZE, G./GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 535.
[3]
DELEUZE, G./GUATTARI, F. Mille Plateaux. Paris: Les Éditions de
Minuit, 1980, p. 536 (Tr. Peter Pál Pealbart e Janice Caifa, vol. 5, p. 119).
[4]
DELEUZE, G./GUATTARI, F. Mille Plateaux. Paris: Les Éditions de
Minuit, 1980, p. 536 (Tr. Peter Pál Pealbart e Janice Caifa, vol. 5, p. 120).
[5] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille
Plateaux, p. 559.
O nomadismo nunca me pareceu tão interessante... sempre o vi como um estado primitivo de sociedade!!! Acaba por mostrar-se, entretanto uma incrível forma de resistência ao poder Estatal...interessantíssimo!
ResponderExcluirO "primitivo" pode estar carregado de sombra etnocêntrica. O nômade não de ontem, nem de amanhã, é sem passado e sem futuro. Ele habita o meio, sempre o meio das coisas. Nesse sentido, ele é atravessado por intensidades, fluxos, matérias pré-formadas - muito mais do que fluxos de ventos ou fluxos de areias do deserto, os tuaregues são atravessados por forças intensas. Não são apenas os deslocamentos territoriais; muito mais, as velocidades intensivas que os fazem intensos. Em oposição ao sedentário, que só se desloca de um espaço ao outro.
ResponderExcluirNão, não... o termo "primitivo" está carregado apenas da minha ignorância fática...não me atrevo a mensurar a importância ou o desenvolvimento de cada etnia...mesmo dentro de minha limitação respeito profundamente as diferenças étnicas e culturais. O modo ocidental de viver se sobrepõe aos demais pela força do capital que é o seu deus, e diga-se de passagem, poderosíssimo... É desta feita mais forte, mas não mais importante, correta ou mesmo desejável.
ResponderExcluirEntendi.. não refutava vc nesta questão, apenas desfazendo o mal entendido do senso comum e do bom senso.
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