A máquina abstrata de combate nômade
O combate começa pela criação de uma máquina abstrata.
As máquinas são abstratas porque ignoram as formas e as substâncias, ou
seja, são matérias não formadas e funções não formais. Para Deleuze/Guattari,
elas traçam pontas que abrem o agenciamento territorial para outra coisa, para
agenciamentos de outro tipo, para o molecular, o cósmico, e constituem devires.[1]
Os próprios estratos que formam o juízo são animados e definidos por
linhas de desterritorialização, são perpassados por linhas de variação que se
elaboram no plano de consistência. “Mesmo o negativo produz movimentos
infinitos: cair no erro, bem como evitar o falso, deixar-se dominar pelas
paixões, bem como superá-las”,[2]
tantos movimentos já podem constituir-se na paranoia que, em vão, luta para
conter as linhas de fuga que definem a desterritorialização. Ela opera o
movimento por meio do qual abandonamos o território.
Essas máquinas (abstratas) se definem justamente por dois movimentos
que operam no território: de descodificação e de desterritorialização. “A linha
de fuga é uma desterritorialização.” Esse conceito define a orientação prática
da filosofia de Deleuze/Guattari. Observa-se, em primeiro lugar, uma dupla
igualdade: linha = fuga, fugir = fazer fugir. Essa linha não mais contorna as
coisas, mas passa entre elas traçando um plano, ganhando sua consistência, sua
imanência, sem que se precise recorrer a transcendências.
É nesse plano de imanência que estão inscritos:
(...) hecceidades,
acontecimentos, transformações incorporais apreendidas por si mesmas; (...) os
devires, que não possuem termo nem sujeito, mas arrastam um e outro a zonas de
vizinhança (...); os espaços lisos, que se compõem através do espaço estriado.[3]
Um mapa de intensidade é um espaço liso que distribui afectos, enquanto seu contrário, o
espaço estriado, distribui funções predeterminadas, lugar de suplícios, ao
passo que, no mapa atravessado por linhas de fuga, há uma violência que
destituiu a imagem organizada do corpo em função da imagem sempre renovável,
remanejável e transformável pelas constelações afetivas que a determinam.
Nesse lugar desterritorializado, há um continuum intensivo, onde
anteriormente (território) só havia formas separadas umas das outras. Agora há
transformação, câmbio intensivo que impede a continuação. Sob todas as espécies
de devir-animal, devir-molecular, há um continuum intensivo. Debaixo dos
estratos e das formas, há migrações que inscrevem processos de
desterritorialização. Migrações espaciais que se fazem por trocas de
intensidades.
Esse ponto limítrofe, entremundos, habitado pelos “autômatos
purificados”,[4]
é justamente o campo de combate. Onde o guerreiro, nômade por natureza, se
tornou, ele mesmo, imperceptível. A razão desse caráter imperceptível que o faz
entrar e sair sem ser capturado é precisamente o estado afectivo. “Os afectos
são precisamente estes devires não humanos do homem.”[5]
A zona de indiscernibilidade é devir que nos faz mundo com ele: “Não estamos no
mundo, tornamo-nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-o (...).
Tornamo-nos universo. Devir animal, vegetal, molecular, devir zero.”[6]
É essa a grande arma dos Tuaregues: tornarem-se deserto com o deserto,
fazer confusão na máquina do Estado que o caça. A arma de guerra dos tuaregues
é a areia com suas dunas e o vento, e tais armas emperram a máquina de guerra
do exército do Estado.
[1] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 637.
[2] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Qu’est-ce que La
philosophie?, p. 41.
[3] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 633. Rendendo homenagem ao
filósofo Duns Scot, que, no século XIV, criou a palavra “haecceitas” para designar, de forma positiva, a singularidade
individual. Deleuze nomeia de hecceidade
um modo original de individuação intensiva, “acontecimental” e, portanto,
móvel. Cf. ZOURABICHVILI, F., op. cit., pp. 116-117
[4] BADIOU, A. Deleuze:
o clamor de Ser. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1997.
[5]
DELEUZE, G./GUATTARI, F., Qu’est-ce que La philosophie?, p. 160.
[6] Idem, p. 160.
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