O combate ao sistema de "juízo de Deus".
Deleuze diz que o “juízo não apareceu sob um solo que, mesmo muito
diferente, tenha favorecido seu florescimento; foi preciso haver ruptura,
bifurcação”.[1]
Como vimos, no começo o homem deve aos homens; a dívida contraída com
os semelhantes é paga com a promessa sem mediação, dívida finita. Depois, a dívida
é para com Deus ou para com os deuses. É preciso haver um equívoco no
pensamento para haver uma ruptura. Na passagem do sistema selvagem para o
sistema despótico é que se encontra “o equívoco”.
A doutrina do juízo de Deus “derruba o sistema dos afectos”. O homem deixa de acreditar em sua força para acreditar na
força que vem de Deus. Nesse sentido, o Antigo Testamento de Moisés
preparou o caminho para a Nova Aliança com São Paulo e João de Patmos. Coube a
Nietzsche e Lawrence denunciar o sistema de valores superiores, “essa pretensão
de ‘julgar’ a vida em nome de valores superiores (...). O juízo irrompe no mundo
na forma de juízo equivocado que chega até ao delírio, à loucura, quando o
homem se engana sobre seu lote”.[2]
O juízo aparece em forma de lote; a forma impõe o lote que não é do
homem, a forma infinita Deus é o próprio juízo infinito. As formas em Deus
passam a vigorar na vida dos homens como regras morais. As metas se mostram por
demais elevadas para ser atingidas. São Paulo insiste nos longos protocolos de
submissão à Forma-Cristo.
O mundo do juízo se instala em sonhos: sonhos das rodas de Ezequiel, sonhos
de São João de Patmos e o grande sonho de São Paulo à caminho de Damasco. Os
sonhos fazem desfilar as formas.
Mas foi sob o cristianismo de São Paulo que o sistema de Juízo alcançou
dimensões cósmicas. O apóstolo dos gentios pretendeu estender o Deus judeu a
uma ordem de Deus único e universal. Sistema de captação de toda energia
libidinal na ordem da linguagem (Paulo põe fim aos ídolos), nessa linguagem o
privilégio absoluto é concedido à relação Eu/Tu, que elimina o mito; e, nessa
relação, faz-se com seja sempre o Tu que fala, e nunca o Eu. Dispositivo do
divã do analista, em que o paciente é Israel, o analista é Moisés, fundador da
nação israelita, e o inconsciente é o Deus dos hebreus (Iahvé): o grande Outro.
No cristianismo, esse
grande Outro se interioriza na forma de suavidade santificada. É o santo
espírito que fala à consciência do crente convicto e culpado de sua
pecaminosidade e impotência. Nietzsche percebeu isso ao destacar que a condição
do juízo é “a consciência de ter uma dívida para com a divindade”[3] e, para fechar o ciclo da dívida, é
necessário que o devedor sobreviva à divida infinita.
Na trindade, o ciclo se fecha com Deus, que julga e pune. Cristo
crucificado paga os pecados; a terceira pessoa da trindade, o Espírito Santo,
não deixa que o pecador esqueça a dívida hipotecada na cruz; os pecados foram
perdoados, mas sob determinadas condições: renúncia e submissão.
O Cristo de São Paulo é o centro significante atrator de todos os
fluxos libidinais. A meta é segui-lo até a morte, com esperança da primeira
ressurreição, quando se assentarão para julgar. Na salvação cristã ou na
danação, de qualquer maneira os indivíduos convivem – ou com a eterna gratidão
do pagamento com o sangue do cordeiro ou com os martírios do inferno.
Deleuze, reporta-se ao sistema de crueldade das sociedades primitivas,
mostra o quanto este se opõe à doutrina do juízo. Diz que “o sistema da
crueldade enuncia as relações finitas do corpo existente com forças que o
afetam, ao passo que a doutrina da dívida infinita determina as relações da
alma imortal com os juízos”.[4]
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