Modos de produção II
As sínteses podem ser inclusivas e exclusivas: as primeiras
multiplicam, pois, enquanto conectiva, ela é a soma deste com aquele; enquanto
disjuntiva, trata-se da coexistência de dois, não de sua mistura; bom exemplo é
a relação entre a vespa e a orquídea, que inaugura um elemento nômade no entrerrelacional,
“núpcias entre dois reinos distintos”. Esse é o ponto de chegada do elemento
nômade ou anômalo: “Nem indivíduo, nem espécie, o que é o anômalo? É um
fenômeno, mas um fenômeno de borda”,[1]
uma relação de aliança. Síntese conjunta de intensidades e devires com
infinitos estados estacionários por onde o sujeito passa: máquina celibatária
de atração e repulsão.
O tipo de produção é de “produção e consumo”. Aqui o sujeito se
pergunta: “Então era isso, então sou eu?” – o sujeito nômade passa por todos os
devires das disjunções inclusivas, torna-se outro sexo, deus, raça,
imperadores. O “Eu”, ou a pretensa autarquia da consciência, nada mais é do que
uma apropriação, até certo ponto despótica, sobre Eus “larvares” parciais,
muito mais primitivos e essenciais.[2]
A síntese que arrasta como um turbilhão o “Eu” do cogito, transcendendo tanto as
“leis da matéria” quanto as “categorias do espírito”.[3]
Ele passeia por quantidades intensivas em estado puro: movimento de
atração e de repulsão, um “eu sinto” antes de qualquer “eu penso”. Conforme
Deleuze/Guattari, trata-se de
um estranho sujeito sem identidade fixa,
errando sobre o corpo sem órgãos, sempre ao lado das máquinas desejantes,
definido pela parte que toma do produto, recolhendo em toda parte o prêmio de
um devir, ou de um avatar, nascendo dos estados que ele consome e renascendo a
cada estado. ‘Então sou eu, então é a mim (...).[4]
Toda produção desejante é, ao mesmo tempo, “consumo e consumação”, por
isso volúpia, gozo e dores. Para Schreber, por exemplo, seu gozo carrega o
sofrimento de se ver transformado em mulher. Mas é o preço que ele tem de pagar
por seu gozo, pois no sofrimento ele se vê redimido.
A criação que existe na loucura é a passagem de um polo passivo para um
polo ativo. A condição passiva de um corpo despedaçado, em que “o corpo todo
não é mais que profundidade e leva, engole todas as coisas nesta profundidade
escancarada”, em que há uma fenda profunda por onde outros corpos penetram e
passam a coexistir com suas partes insuportavelmente, o esquizofrênico sobrepõe
um corpo sem órgãos. Trata-se de um “corpo glorioso e superior”, procedimento
ativo que dá uma nova dimensão ao corpo esquizofrênico. É “um organismo sem
partes que faz tudo por uma insuflação, inspiração, evaporação, transmissão
fluídica”. Corpo de propriedades líquidas, funcionando como um cimento que liga
as partes do corpo despedaçado, nem por isso capaz de restaurar a fenda
profunda que é a causa patológica do esquizofrênico.[5]
No Anti-Édipo, a
noção de esquizofrenia se amplia e passa a ser pensada como processo de
produção, e não mais como patologia. O corpo sem órgão é pensado como limite
imanente à produção desejante e, na psicanálise, como vimos, é chamado de
instinto de morte.
(...) Antonin Artaud descobriu-o
precisamente onde ele se encontrava, sem forma nem figura. Instinto de morte é
o seu nome, e a morte não existe sem modelo. Porque o desejo também deseja a
morte, porque o corpo pleno da morte é o seu motor imóvel, tal como deseja a vida,
porque os órgãos da vida são a working
machine.[6]
Por não possuir órgãos, essa superfície é incapaz de produzir,
configurando-se como um fator de antiprodução. Trata-se de um fluído amorfo e
indiferenciado, de uma superfície deslizante que não aceita aderências.
Obscuridade, delírio, loucura, pathos.
São alguns nomes que arregimentam o conceito deleuze-guattariano de “corpo sem
órgãos”.
Esse conceito, tão
vibrátil na filosofia de Deleuze, não se confunde com um mero caos, com um
indiferenciado amorfo. Pois o corpo sem órgãos é um entremeio intensivo (spatium)
dos devires, de transversalizações entre singularidades pré-individuais,
pré-pessoais e pré-significantes. Em suma, o corpo sem órgãos é o tempo em
estado puro, Aion. Porém, é em
virtude dessa configuração que ele pode funcionar como um “motor imóvel”: ao se
opor à característica fundamental das máquinas desejantes, que é efetuar
conexões, acaba por impulsionar ainda mais seu funcionamento.
[1] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mille Plateaux, p. 298.
[2] Nota-se. já aqui. a ressonância com os livros de 1969 e
1972. Assim, em O Anti-Édipo (1972), Deleuze/Guattari nos mostram que
tal processo de apropriação é efeito da cristalização, ou perversão, daquilo
que os autores chamam de “síntese conjuntiva” do inconsciente, que é uma
síntese passiva entre objetos parciais. Sendo, portanto, anterior ao sujeito, o
constitui. Já em Lógica do sentido, veremos que o Eu, na esteira do
sentido, é efeito da posição de singularidades frente ao “elemento paradoxal”
em constante movimento.
[3] DELEUZE, G. Proust et les signes.
Paris: PUF, 1964, p. 68 (Tr. Antônio
Piquet e Roberto Machado, Rio de Janeiro: Forense, 1987. (1ª ed.: 1964)
[4] DELEUZE, G. E
GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972, p. 23 (Tr.
Luiz B. Orlandi, p. 30).
[5] DELEUZE, G. Logique Du sens. Paris: Les Éditions de
Minuit,1969, pp. 101 – 114 (Tr. Luiz. Roberto. Salinas Fortes, pp. 86 – 96.
[6] DELEUZE, G. E GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe, p. 14.
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