Síntese conjuntiva de consumo




Em seu uso legítimo, nômade e plurívoco, “trata-se de relações de intensidade através das quais o sujeito passa para o corpo sem órgãos, e faz transformações, altos e baixos, migrações e deslocamentos (...)”, intensidades e devires animadas pela energia voluptuosa, do prazer e do gozo. “Dir-se-ia, assim, que, nessas transformações, passagens e migrações intensas, nessa grande deriva que percorre o tempo nos dois sentidos, tudo se mistura.” É tudo de que a psicanálise não pôde dar conta.
Quando o delírio se instala, não se delira sobre figuras parentais. Esta é um das teses do Anti-Édipo; delira-se sobre países, raças, famílias, nomes familiares, nomes divinos, nomes históricos, geográficos e até mesmo pequenos acontecimentos. Não é a loucura, mas é um tipo de loucura, separam-se a paranoia e o delírio da potência paranoica e delirante. Há dois tipos de delirantes: de certa forma, em suas relações com Deus, Schreber tem todos os sentidos de uma paranoia. Porém, em outros momentos, “ele não é louco, dado que  permanece capaz de gerir sabiamente sua fortuna e de distinguir os círculos”.[1]
Esse é um dos tipos de paranoia delirante, “no outro polo, existem aqueles que não parecem absolutamente loucos, mas que  o  são,  como  demonstram  suas ações súbitas, querelas, incêndios, assassinatos”.[2]
A síntese conjuntiva em seu uso devido prepara o caminho para o primeiro sentido, que é percorrido por afetos e devires, um sinto que “me torno Deus, me torno mulher [...], fui Joana d’Arc e [...] sou Heliogabalo, e o Grande Mongol, um Chinês, um pele-vermelha, um Templário [...] fui o meu pai e [...] fui o meu filho”. Tudo que se criou para tentar manter sob controle é sugado para o fundo do universo incorporal: é quando o filho ameaça dizer: não sou o que vocês desejavam que eu fosse, nem não sou o que pensam que eu seja. Não sou isso, nem aquilo; sou isso e aquilo, e aquilo outro. “Mas, se tudo se mistura assim, e em intensidade, na confusão de espaços e formas, visto que estes são desfeitos em proveito de uma ordem, a ordem intensa, intensiva.”[3]
O real é isso, e tudo que se pode dizer de uma máquina de guerra não é o bastante. A máquina celibatária é a máquina de guerra nômade, ela se encontra no centro de tudo, da máquina do desejo e da máquina celibatária do eterno retorno. A ilusão de o sujeito ser o centro não passa de mais um fantasma. “O próprio sujeito não está no centro, ocupado pela máquina, mas nos contornos, sem identidade fixa, sempre descentrado, concluído nos estados pelos quais passa.”[4]
O sujeito foge do centro, mas se encontra em qualquer lugar, pois tudo é atravessado por singularidades da “rede disjuntiva, ou de estados intensivos no tecido conjuntivo, e um sujeito transposicional por todo o círculo, passando por todos os estados”.[5] Não há identificação com pessoas, mas a identificação dos nomes da história com zonas de intensidade sobre o corpo sem órgãos; e o sujeito grita sempre “Afinal sou eu!”.[6]
Ele está solto, avulso, sua máquina é celibatária, não existe somente a repulsão, nem somente a atração, mas as duas juntas, num movimento combinado, associativo. Por isso é chamada de síntese conjuntiva de intensidades e devires. A dualidade “positivo/negativo” aqui ocorre entre um polo despótico-paranoico e o signo-figura do esquizo. O uso ilegítimo dessa síntese a torna segregadora e biunívoca. Ser deste ou de outro país, ser do Primeiro, Segundo ou Terceiro Mundo. Ser militar ou civil. Homem ou mulher. Trabalhador ou desempregado, judeu ou palestino, do bem ou do mal: terrorista iraquiano ou democrata/republicano. Não confundir com o déspota paranoico, que existe, mas é uma projeção no campo social do que ocorre na primeira síntese do inconsciente.


[1] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux,  p. 73.
[2] Idem, p. 151.
[3]  DELEUZE, G. e GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe, pp. 100-104.
[4] Idem, p. 28.
[5] Idem, p. 105.
[6] Idem, p. 29.

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