... do Eu - VI


Como podemos ver, a “dança” entre virtual e atual realiza um movimento no tempo sob a direção de uma flecha temporal que vai do virtual ao temporal, mas a direção da flecha não é linear. É preciso introduzir o modo de funcionamento da máquina, que, com seus emperramentos, suas paradas bruscas, não envolvem menos intensidades confusas que ameaçam a estabilidade do mundo e irrompem atualizações novas, novas individuações.
As sínteses da máquina desejante se encontram subsumidas nas sínteses passivas do tempo, em que o destino pode sempre tornar-se de novo obscuro, e o confuso pode tornar-se claro. As diferenças de velocidade, saltos, acelerações, rupturas fazem com que o tempo, depois de desfiar-se, faça movimentos de volta, a fim de se enroscar  em espiral, terceiro termo introduzido por Deleuze para perfazer outra figura do tempo além da linha e do círculo.
Assim, Deleuze conclui que há três sínteses do tempo, uma tripla natureza que se constitui no entrelaçamento do tempo.
A primeira síntese é a fase da fundação linear do tempo, constituindo o “presente vivo” dos hábitos, as multiplicidades de durações das coisas existentes.

À primeira síntese, corresponde um primeiro complexo questão-problema tal como ele aparece no presente vivo (urgência da vida). Este presente vivo e, com ele, toda a vida orgânica e psíquica repousam sobre o hábito (...) o hábito como a fundação da qual derivam todos os outros fenômenos psíquicos.[1]

Há de se ter a preocupação de não vincular o hábito ao princípio do prazer, o que nos afundaria na questão psicanalítica da moral da falta.[2] Para Deleuze, o hábito que se forma na primeira síntese precede o prazer obtido. Trata-se do hábito da fundação do tempo: ainda não existe um sujeito que experimenta o princípio do prazer. “A primeira síntese, a do hábito, é verdadeiramente a fundação do tempo; mas devemos distinguir a fundação e o fundamento.”[3]
Os hábitos que nos compõem são as pretensões, as presunções, satisfações, fadigas, as variações, são o solo daquilo que somos, produto das sínteses passivas.

A fundação concerne ao solo e mostra como algo se estabelece sobre este solo, ocupa-o e o possui; mas o fundamento vem sobre tudo do céu, vai do ápice às fundações, avalia o solo e o possuidor de acordo com um título de propriedade. O hábito é a fundação do tempo, o solo movente ocupado pelo presente que passa.[4]

Para Deleuze, a sensibilidade é o operador da primeira síntese do tempo, agente de uma síntese passiva geradora do presente vivo, do tempo da individuação. É a matéria receptiva como barro na mão do oleiro (Aion) que se deixa amoldar, “matéria receptiva” que contempla e contrai. Os eus que contemplam não possuem uma identidade pensante; trata-se de matéria sensível cujas sínteses são perceptivas no nível de sentidos e orgânico, mas não por uma faculdade do pensamento.
O cérebro capta sensível e refinadamente a complexa síntese sensível que funda a repetição de um hábito, uma disposição de expectativa em relação a alguma coisa que se repete.
Em um sentido orgânico, Deleuze situou com o termo “placa sensível”, sentido correlato do que Freud, no Projeto, chama de “marcas mnêmicas”. “É preciso notar, sobretudo, que não se trata de uma memória nem de uma operação do entendimento: a contração não é uma reflexão.”[5] Um hábito é presente vivo que contrai do passado e antecipa o futuro. Nesse sentido, a primeira síntese tem dentro de si o presente e o passado contraídos.
A segunda síntese é a fase do fundamento circular do tempo, síntese de um passado puro que faz com que todo o presente passe; o presente aqui é apenas atualização do tempo. Para Deleuze, aqui já aparece uma primeira “camada do Isso”, ou a gênese de um aparelho psíquico, mas ainda não satisfaz as exigências de um aparelho capaz de fluir o princípio de prazer freudiano; ainda estamos em níveis de processo, as excitações ainda são dispersas e parciais. Ainda não há um órgão especificado que busca o prazer.
No momento em que há um pathos anterior, como nesse caso, então é possível falar em “máquinas desejantes”. Mas esse conceito só vai ocorrer mais tarde, no encontro de Deleuze com Guattari. As excitações esparsas continuariam se o processo não se desdobrasse em princípio de prazer. “O prazer se torna princípio a partir da ligação das excitações esparsas. A ligação pode ser pensada como investimento.”[6]
Para Deleuze, trata-se de uma ligação através do “princípio transcendental”. Em Kant, o transcendental é o que determina o quadro da experiência possível, mas que só se revela depois da experiência. Existe uma condição a priori, mas que só pode ser conhecida a posteriori. Há condições que predeterminam a forma do conhecimento, mas que não podem ser conhecidas fora da experiência, isso é o transcendental. Significa que um retorno sobre o conjunto da experiência é necessário para ver não só o que se passou durante a experiência, mas também para conhecer as condições anteriores, as condições prévias, a grade pela qual se obteve a experiência. Para Deleuze, o transcendental “é a condição da passagem do prazer como processo para o prazer como princípio (...)”.[7]
A diferença entre Kant e Deleuze é que o primeiro reservou apenas um papel passivo, subordinado às sínteses ativas que o entendimento, a imaginação esquematizante e a razão operam sobre os dados desordenados. Para Deleuze, é diferente: a sensibilidade funciona como operador da primeira síntese do tempo (geradora do presente vivo e do passado puro), o agente de uma síntese passiva do tempo da individuação.
“Na ordem da passividade constituinte, as sínteses perceptivas remetem a sínteses orgânicas, como a sensibilidade dos sentidos remete a uma sensibilidade primária do que somos.”[8] As sínteses passivas dão origem ao hábito, e isso explica o enunciado: a repetição nada muda no objeto que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla (a repetição). Algo como a passagem do estado de coisas para o acontecimento – alguma coisa que não é físico nem psicológico. Deleuze leva em conta que toda matéria receptiva que contempla e contrai é essencialmente matéria sensível, as sínteses perceptivas fornecidas pelos sentidos e pelo sistema nervoso central são apenas uma forma refinada e complexa da síntese sensível.

Somos água, terra, luz e ar contraídos, não só antes de reconhecê-los ou de representá-los, mas antes de senti-los. Em seus elementos perceptivos, como também em suas vísceras, todo organismo é uma soma de contrações, de retenções e de expectativas. No nível desta sensibilidade vital primária, o presente vivido, já constitui no tempo um passado e um futuro. Este futuro aparece na necessidade como forma orgânica da expectativa; o passado da retenção aparece na hereditariedade celular.[9]

É inegável que, já nesse momento, Freud com o Projeto se põe a dialogar com a filosofia ou que Deleuze se põe a dialogar com Freud. Hábitos têm um valor correspondente, no Projeto, em correntes de facilitações neuronais. Depois que um fluxo de desejo (energia) atravessa uma espécie de cadeia neuronal, a passagem do fluxo deixa para trás marcas mnêmicas que passam a funcionar como estradas de facilitação de escoamento de novos fluxos, são as correntes de facilitação. Sensações, estímulos, respostas, emoções e pensamentos inconscientes que se constituem antes, estradas orgânicas que perfazem os hábitos. Na altura de um filósofo, diz Freud:

Depois que a passagem de determinada percepção para certas catexias intencionais específicas é repetidamente seguida e se encontra estereotipada por facilitações mnêmicas, em geral não há mais motivo para que sejam despertadas as indicações de qualidade.[10]

Para ele, a atenção psíquica vai depender dessa catexia neuronal somada à catexia perceptual, que se opera na passagem da primeira experiência de facilitação. Daí o hábito se conclui na experiência de satisfação, “que é tão importante para todo o curso de desenvolvimento, e em suas repetições: estados de anseio que evoluem para estados de desejo e estados de expectativas”.[11]


[1]  DELEUZE, G., Diferença e repetição, p. 140.
[2] Idem, pp. 138-140. Ver também  BRUNO, M., Lacan e Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer,  pp. 159-162.
[3] DELEUZE, G., Diferença e repetição,  p. 141.
[4] Idem, ibidem.
[5] DELEUZE, G., Diferença e repetição, p. 128.
[6]  BRUNO, M., Lacan e Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer,  p. 162.
[7] BRUNO, M., Lacan e Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer,  p. 163.
[8] DELEUZE, G., Diferença e repetição,  p. 131.
[9] Idem, p. 131.
[10]  FREUD, S. “Projeto para uma psicologia científica” In: Obras completas. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Jnaiero: Editora Imago, 1996, p. 433. [1950 (1895)]
[11] Idem, p. 416.

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