Síntese disjuntiva (...) II
Nesse ponto, há uma estratégia na edipianização: “(...) foi o próprio
Édipo que criou tanto as diferenciações que ordena como o indiferenciado com
que nos ameaça. (...)”. Ele inventa um objeto a ser desejado para depois proibir
o desejo de desejá-lo – essa é a lógica do incesto. A edipianização força o
desejo a tomar como objeto as pessoas parentais diferenciadas, “e em nome das
mesmas exigências interdita o eu correlativo de satisfazer seu desejo nessas
pessoas (...)”. É quando o desejo, ameaçado de desejar o indiferenciado, passa
a ter vergonha. “Mas foi precisamente ele que criou esse indiferenciado como
reverso das diferenciações por ele criadas.”[1]
A segunda síntese opera por disjunção; é também chamada de síntese
disjuntiva de singularidades e das cadeias. Em vez de uma e outra e outra,
temos uma ou outra, ou outra etc. A vinculação aditiva cede lugar à
alternativa. A energia Numen é o mesmo que vontade (divina ou majestade).[2] Aqui, os órgãos se ligam ao corpo sem
órgãos constituindo uma síntese sobre sua superfície que forma cadeias.
Quando a disjunção é positiva, é esquizofrênica, a síntese é inclusiva,
as categorias se aceitam e se vinculam; quando a disjunção é negativa, é
capitalista, as disjunções, ao contrário, são exclusivas, separando e excluindo
elementos. Sua máquina é a paranoica,[3] que funciona por repulsão, e sua produção
é produção de registro: são os códigos registrados e inscritos sobre o corpo
sem órgãos.[4]
É verdade que o capitalismo não teme os fluxos decodificados, mas temos
de reconhecer a operação que ocorre em nível micropolítico. A ausência de temor
das sociedades capitalistas se justifica no fato de a família já estar operando
indevidamente o interior das sínteses. O capitalismo descansa no trabalho bem elaborado
pela edipianização. Mas ainda lhe resta um terror, ou seja, de que as máquinas
funcionem continuamente em seu uso devido. O que ocorreria nesse caso: a
sociedade inteira seria esquizofrênica? Provavelmente não, pois os indivíduos
se encarregariam de segregar as sínteses indevidamente. Há um fascismo
molecular do povo, mas primeiro o fascismo é do indivíduo. Mas voltemos à
síntese disjuntiva de registro:
O processo como processo de produção se
prolonga em procedimento como procedimento de inscrição. Ou melhor, se
chamarmos libido ao ‘trabalho’ conectivo da produção desejante, devemos dizer
que uma parte desta energia se transforma em energia de inscrição disjuntiva (Numen).
Transformação energética.[5]
O divino, neste caso, refere-se ao caráter da energia de disjunção.
Deus diz pela boca de Moisés, eis que Eu Sou a vida e a morte, a luz e a
escuridão, o bem e o mal. “O divino de Schreber é inseparável das disjunções
nas quais ele se divide em si mesmo.”[6] O Deus do delírio o é de todos os
impérios superiores, mas é também superior, inferior, Deus homem e Deus mulher.
“As disjunções são a forma da genealogia desejante”,[7] e Édipo se propõe a domesticar uma
matéria e uma forma de genealogia que escapa por todos os lados. Em lógica
da sensação, Deleuze associa o corpo sem órgãos de Artaud ao corpo da
histeria: “Há muitas aproximações ambíguas na vida, o corpo sem órgãos, o
álcool, a droga, a esquizofrenia (...), mas à realidade viva desse corpo
podemos nomeá-la de histeria e em que sentido?”[8]
[1] Idem, p. 93.
[2] Referência
ao Deus de Schreber, “mas por que chamar divina ou Numen à nova forma de
energia, apesar de todos os equívocos criados por um problema do inconsciente
que só é religioso na aparência? O corpo sem órgãos não é Deus, muito pelo
contrário. Mas divina é a energia que o percorre quando ela atrai a produção e
serve de superfície encantada miraculante, inscrevendo-a em todas as suas
disjunções. Daí, as estranhas relações que Schreber mantém com Deus. A quem
perguntar: vocês acreditam em Deus? Devemos responder de maneira estritamente
kantiana ou schreberiana: certamente, mas apenas como mestre do silogismo
disjuntivo, como princípio a priori desse silogismo (Deus define a Omnitudo
realitatis de onde todas as realidades derivadas saem por divisão)”. (Anti-Édipo,
p. 28.)
[3] Essa
atribuição, “máquina paranoica”, é uma alusão ao paranoico que inventa
aparelhos pesados, máquinas espantosas para reprimir os desejos. A bicicleta é o
instrumento predileto para os paranoicos. De Numem, deriva o sentimento do numinosum.
Otto entende a característica essencial e exclusiva da religião “e, sem ele, a
religião perderia suas características”. (OTTO, Rudolf. O sagrado: um estudo do elemento
não racional na ideia do divino e
sua relação com o racional. Tradução
de Prócoro Velasquez Filho. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985,
p.12. “Se lumen pode servir para formar luminoso, numen pode formar
o numinoso”. (...) “Assim também se explica o que se acostumou a chamar de
caráter fanático dessa religião. O sentimento do numen é a essência do fanatismo” (Idem, p. 12).
[4] A dimensão da pulsão de morte que busca na eliminação total
da descarga um retorno ao inanimado tal como formulada por Freud em Para
além do princípio do prazer parece-nos estar em conexão conceitual
com a formulação do corpo sem órgãos no Anti-Édipo como “puro fluido
indiferenciado, o improdutivo, o inengendrado”. “Instinto de morte é seu nome.
Porque o desejo deseja também isso, a morte.” A partir da formulação de Artaud,
Deleuze/Guattari vão conectar o corpo sem órgãos à pragmática do desejo.
Trata-se de combater o desejo ligado à falta, reunindo o desejo com o corpo sem
órgãos, para mostrar o que se processa no encontro entre corpos. O corpo sem
órgãos como um contínuo circuito de intensidades marca a estranheza do plano de
imanência do corpo sem órgãos em relação ao corpo orgânico.
[8] DELEUZE, G. Francis Bacon, Logique de la sensation. Tradução
de Roberto Machado. Paris: Editions de la Différence, 1984, p. 34.
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