Síntese disjuntiva III
O corpo sem órgãos é percorrido por “uma onda de amplitude variável”,
traçando linhas, perfazendo gradientes, “limiares e níveis segundo as variações
de sua amplitude”. Em cada encontro de onda e das forças exteriores, uma
sensação aparece, um tremor. Os órgãos são miraculados nesses encontros, mas
eles são de curta duração, só permanecem “durante a passagem dessa onda, e a
ação dessa força é que vai se deslocar para outro lugar”. Temos, assim, um
corpo esquizofrênico, os órgãos perdem sua constância e localização, bem como
sua função. Como ficou marcado, “a boca anoréxica serve para defecar”. Os
órgãos sexuais aparecem em toda parte.
Como podemos falar em corpo sem órgãos ao nos referirmos ao corpo? “Ao
corpo sem órgão, não faltam órgãos, o que lhe falta é o organismo.” Os órgãos
não estão submetidos a uma organização de órgãos. O que determina o corpo sem
órgãos é um indeterminado, pois ele é imanência do desejo. Ao passo que os
órgãos são determinados e definidos por seu funcionamento e lugar. No campo de
forças do corpo sem órgãos, uma boca pode tornar-se ânus. “Assim, compõe-se uma
série: sem órgão-órgão indeterminado polivalente – órgãos temporários e
transitórios”.[1]
Daí a admiração de Deleuze pela pintura de Francis Bacon: ele cria
zonas de indiscernibilidade no corpo. O que são os ossos do corpo? Apenas
estrutura espacial (...) e até os ‘aparentados da carne’, os ‘aparentados do
osso’”.[2]
Bacon faz saltar, na pintura, um como estrutura relacional do outro. A relação
osso/carne de um corpo só aparece na carne quando lhe falta o osso. Essa
revelação do corpo desorganizado, “carcaças em potência”, só pode ser percebida
a partir da visão esquizofrênica.
Como pôde a psicanálise pretender dar conta do Deus superior de
Schreber quando esse Deus se apresenta disjunto, sob a forma de irmão mais
velho e, ao mesmo tempo, sob a forma de um Deus inferior? É que o jogo
esquizofrênico está sempre pronto a acrescentar novas peças ao jogo, algo semelhante
ao Go, que acrescenta um novo e inesperado movimento a cada obstáculo ou
desafio. O Go é um jogo esquizofrênico. É difícil imaginar Schreber diante de
um analista com a produção de enunciados que lhe são próprios. Segundo
Deleuze/Guattari,
Mas é claro, sim, sim, os pássaros
falantes são moças, e o Deus superior é papai, e o Deus inferior, meu irmão.
Mas, discretamente, reengravida todas as moças de todos os pássaros falantes, e
seu pai do Deus superior, e seu irmão, do Deus inferior, todas as formas
divinas que se complicam ou antes ‘se dessemplificam’, à medida que vão
aparecendo sob os termos e funções demasiadamente simples do triângulo edipiano.[3]
O código de registro esquizofrênico não coincide com o código social. A
psicanálise depende de determinado código social para funcionar. O
esquizofrênico passa de um código a outro sem parar; ele embaralha todos os
códigos, embaralhando a interpretação psicanalítica. Nesta segunda síntese
passiva, o corpo pleno sem órgãos volta a atrair a produção desejante.
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