A positividade do instinto de morte




Deleuze (1988) vê que “desde o início, o recalque designa uma potência positiva”.[1]
A positividade do recalque é retirada, segundo ele, do princípio do prazer e do princípio de realidade, “positividade apenas derivada da oposição”. Não é a tendência à destruição, ou a sua agressividade que faz da pulsão (instinto de morte) o trágico em Freud, mas sim seu caráter de repetição. Diz Deleuze: “(...) mas em função de uma consideração direta dos fenômenos de repetição”.[2] Nesse sentido, a pulsão ou instinto de morte, como preferiu Deleuze, “vale como princípio originário para a repetição, ai estando o seu domínio e o seu sentido”.[3]
A pulsão de morte deixa de ter relação com a “história”[4] para se inscrever ou para presentificar o devir. Não é apenas a disjunção traumática do instinto de morte que faz dele uma positividade, mas sua perpetuação em retornar. A memória de um Eu que tende a conservar é rompida pelo “trauma” da cesura, arrastando-o sem escolha para o devir. Como bem lembrou Auterives, em sua tese sobre a violência do ato de pensar:

De qualquer forma, para nós a pulsão é disjuntiva, só que a disjunção é imanente e não causada por um princípio transcendente, identificada como destruição disjuntiva, se faz na vida, na imanência da vida,. Ali, onde segundo Blanchot, a vida alcança desvios, ou é alcançada por paradas, suspensões, que são, na realidade retorno incessante de uma novidade por vir.[5]

É importante essa noção porque a “destruição” do retorno repetido repete também a destruição de formações do grande Outro, seja ele as formas de Um, de um Deus, de um significante, de um Pai ou de um Estado em nós. Todas essas formas referidas se remetem à história, mas a pulsão de morte se refere ao devir. “Ela trabalha para destruir o arquivo”, segundo Derrida, “com a condição de apagar seus ‘próprios’ traços que já não pode, desde então, ser chamados de ‘próprios. Ela devora seu arquivo antes mesmo de tê-lo produzido externamente.”[6]
Mas não podemos negar o jogo entre o princípio de prazer, que é de caráter estritamente psicológico, com as forças do instinto de morte, que, para Deleuze, “desempenha um papel de um princípio transcendental (...). Eis por que ele é, antes de tudo, silencioso (não dado na experiência), ao passo que o princípio de prazer é ruidoso”.[7]
A questão é fugir do tema da morte como um acontecimento negativo, como apareceu na psicanálise, “não existe mais negativo na vida psicológica”. O que parecia negativo se tornou agora “o mais positivo, transcendentalmente positivo, a ponto de afirmar a repetição?”.[8] Sim, não se trata de um mal radical de sofrimento e angústia.
As rupturas nas ligações de Eros não são como se poderia pensar em termos de clínica, um trauma a ser tratado. O instinto de morte (Thanatus) é o princípio que traz consigo as forças disjuntas da Grande Saúde, o apagamento das marcas mnêmicas, o Grande Esquecimento.
“A ética da criação da diferença”, “a política das forças”, que instaura a criação a partir da fissura do Eu. Nem mesmo a neurose repete o idêntico; ela traveste as imagens de um disfarce que é próprio da neurose obsessiva. O sofrimento está no fato de imaginar a repetição ameaçada pela derrocada do mesmo idêntico. Deleuze viu isso no Caso Dora: “Dora só elabora seu próprio papel e só repete seu amor pelo pai através de outros papéis desempenhados por outros e que ele própria desempenha em relação a outros (K, Senhora K, a governanta)”.[9]
A morte de que se trata aqui não é material no sentido biológico, mas de transformações que são acompanhadas de afectos intensos, sensações intensas (que podem lembrar a sensação de estar morrendo). É que o caráter disjuntivo das forças do instinto de morte suspende temporariamente os “organismos” de eu-supereu, das formas que oferecem estabilidade e conformidade. No Anti-Édipo, “a experiência de morte (...) se faz na vida e para a vida em todas as passagens e transformações”.[10] O instinto de morte é “além do bem e do mal”, é, portanto, puro devir.
A dificuldade da psicanálise é travestir a repetição bruta do instinto de morte, e ela faz isso ao tentar orientar a interpretação para um teatro, “os disfarces e as variantes, as máscaras e os travestis não vêm ‘por cima’, mas são, ao contrário, os elementos genéticos internos da própria repetição, suas partes integrantes e constituintes”.[11]
O que existe afinal é uma repetição pura; o disfarce é uma oposição com as forças, compromisso do princípio secundário que se vê, o tempo todo, acossado por forças que ameaçam o Eu. Mesmo na ida aos limites do além do princípio de prazer, o que subsiste no mais profundo do indivíduo é a repetição pura. Se há a presença do instinto de morte (segundo interpretação negativa) no caso dos masoquistas, dos drogados ou de qualquer um daqueles mencionados no desfile lúgrube de corpos,[12] ainda assim Freud estaria de acordo no sentido de que haveria ali uma “tendência a retornar ao estado de uma matéria inanimada, o que mantém o modelo de uma repetição totalmente física ou material”.[13]
As ligações de Eros, suas formações, sob o império de Thanatus, deve ser repetido. Na verdade, Eros só é “vivido na repetição”, mas não estamos, com isso, criando uma crença na cura pela repetição. Essa é outra questão que não cabe aqui. Ao entrar nesses planos que compreendem universos intensos, seguindo Deleuze/Guattari, nossa questão passa a ser a da ida às profundezas do ser humano e considerá-lo além dos preconceitos morais. Como diz Giacoia, “o essencial em nossa existência permanece envolto num mistério impenetrável a qualquer explicação racional”.[14]




[1] DELEUZE, G., Diferença e repetição, p. 44.
[2] Idem.
[3]  Idem.
[4] Cf. Mario Bruno em “O não e o sim”, “não foi por ter negligenciado o conceito de ‘pulsão’ que Deleuze retomou a palavra instinto para ‘traduzir’ Trieb e nos fala de instinto de morte. É evidente que ele não estava querendo voltar à discussão, já desgastada, de como traduzir a palavra Trieb. ‘Instinto de morte’ é um conceito deleuziano, inspirado no que há de trágico em Freud ao pensar o além do princípio do prazer. Até porque os franceses acabaram por antropomorfizar demais a palavra Trieb. Sabemos que a insistência da escola francesa no termo ‘pulsão’ sofre de nítidos ecos do antropologismo de Hegel (lido à luz de Kojève): a necessidade de compreender a pulsão como uma negação negadora que separa irremediavelmente o homem da natureza. E deduzimos que, apesar dos compromissos semânticos que a palavra instinto possa ter, aos olhos de Deleuze provavelmente lhe parecia menos antropomórfica”. (BRUNO, M. In: FURTADO, Beatriz e LINS, Daniel (orgs.)._Fazendo rizoma. São Paulo: Hedra, 2008, pp. 98-99.
[5] MACIEL, A. Jr. O que nos faz pensar? As condições do pensamento na experiência-limite. Tese de Doutorado. UFRJ, 2002, p. 104.
[6]  DERRIDA, J. Mal de arquivo, uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001, p. 21.
[7] DELEUZE, G., Diferença e repetição,  pp. 44-45.
[8]  Idem, p. 45.
[9] Idem.
[10] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. apud AUTERIVES, M. O que nos faz pensar? Tese de doutoramento, UFRJ, p. 103.
[11]  DELEUZE, G., Diferença e repetição., p. 45.
[12]  DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, pp. 9-30.
[13] DELEUZE, G, Diferença e repetição,  p. 45.
[14]  GIACOIA, JR., O. Nietzsche. São Paulo: Polifolha, 2000, p. 36.

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