AS MÁQUINAS DESEJANTES
O que caracteriza as máquinas desejantes é seu modo de funcionamento
pré-individual e independente em relação aos outros objetos; trata-se de um plano
disperso e anárquico. Esse plano é o inconsciente, mas concebido como
multiplicidade pura, em que tais objetos se encontram em constante movimento.
“Funcionando e produzindo”, no mesmo instante em que compõem máquinas.
Seguindo O Anti-Édipo, torna-se impossível pensar o inconsciente
como um corpo despedaçado, cuja unificação ou totalização dos objetos
resultaria em um objeto. Para Deleuze/Guattari, órgãos ou fragmentos deles não
remetem a um “organismo que funcionaria fantasmaticamente como unidade perdida
ou totalidade futura”.[1] A dispersão que tais objetos constitui
não tem relação alguma com a falta; trata-se da presença da multiplicidade que
se forma sem unificação, e não é possível haver nenhuma totalização. “Dispostas
todas as estruturas, abolidas todas as memórias, anulados todos os organismos,
desfeitas todas as ligações, eles valem como objetos parciais brutos, peças
trabalhadoras dispersas de uma máquina também dispersa.”[2]
Em suma, aquilo que a psicanálise chamou de objetos parciais “são as
funções moleculares do inconsciente”.[3] Os objetos parciais não possuem significado
algum a priori e são desprovidos de
objetivos e intenções. Além disso, os objetos parciais não têm história, não
têm memória, nem registros de nada, de modo que, entre eles, não existe
hierarquia: não possuem lugares fixos nem identidades. Qual é então o
significado de um objeto parcial? A teoria kleiniana não pôde entender que um
objeto parcial consiste apenas em intensidades e potência.
As intensidades são o povoamento do inconsciente que, a princípio, não
tem intensidades; suas intensidades provêm dos objetos parciais que o povoam. (São
os milhares de Eus larvários?) Embora os objetos parciais estejam envolvidos na
constituição de um sistema molar, sua independência e autonomia em relação ao
todo são garantidas por um funcionamento molecular altamente diferenciado, de
modo que cada objeto parcial é potencialmente capaz de realizar infinitas
conexões.
Por serem essencialmente desprovidas de qualquer especificação a priori, suas conexões e sínteses são
sempre passivas e indiretas, descentralizadas, plurais, momentâneas e flexíveis,
remetendo à noção de nômades (Platô, 1227 – Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra). É
por isso que toda análise do inconsciente deve estar isenta de determinismos do
tipo causa-efeito, sujeito-objeto, e por outro lado, deve estar inserida em um
complexo jogo de produções de ordem molecular.
Portanto, o “isso funciona por toda parte: às vezes sem parar, às vezes
descontinuamente (...). Por toda parte são máquinas, e sem qualquer metáfora:
máquinas de máquinas, com suas ligações e conexões”,[4] cada um de nós, um conjunto de pequenas
máquinas. Há uma afirmação (implícita) que se repete no Anti-Édipo: “Tudo
é máquina”. Com isso, os autores querem mostrar que as maquinações estão
presentes na produção do real e da realidade.
Os autores não tomam o termo mecanicismo
pelo mesmo sentido em que ele aparece no século XVI. Na verdade,
Deleuze/Guattari estão subvertendo o sentido do mecanicismo clássico, assim
como todo o resto da obra da dupla tem relação com a subversão.[5] Seu propósito é elaborar uma maquinaria
que represente o funcionamento do homem e da natureza, mas que os produza
incessantemente. Além disso, tais arranjos maquínicos devem funcionar com
autonomia, dispensando a ação de qualquer elemento transcendente que os animem
ou que lhes ditem determinações finalistas, de modo que a máquina jamais seja
encarada como uma metáfora da realidade, como o é no mecanicismo.
[5] Desde
meados do século XVI, o termo “mecânico” é utilizado para designar a teoria que
explica as obras da natureza como se fossem obras mecânicas ou, mais
especificamente, como se fossem máquinas. As máquinas, cujas operações
substituem as operações naturais, podem até mesmo superá-las, acabando eleitas
no mecanismo como a metáfora ideal para se explicar toda a realidade, seja ela
natural ou não. De modo geral, diz-se que a realidade é composta por corpos em
movimento, corpos que carecem de força própria, o que significa que toda força
possuída por um corpo teria sido impressa por outro corpo, através do choque.
Nesse sentido, o mecanicismo apoia-se em rigorosos princípios de causa-efeito
de leis naturais. Ver MORA, J. F. Dicionário
de filosofia. 5 ed. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1964, v. II.
Comentários
Postar um comentário