As máquinas desejantes II
As máquinas são a própria realidade em sua produção indiscriminada,
produção desejante e social. Quando os autores empregam o termo máquina, não
estão se referindo a ele metaforicamente. O homem mesmo constitui uma máquina,
desde que esse caráter seja comunicado por recorrência ao conjunto do qual faz
parte em condições bem determinadas, meio ambiente e ambiente social.
Em relação ao inconsciente, o objetivo é opor-se ao modelo de
funcionamento estrutural e mecânico, em que as operações se dão através de
arranjos entre instâncias psíquicas interdependentes, como se cada máquina
tivesse uma função, e todas juntas fizessem funcionar um organismo. Em oposição
a essa mecânica, que concebe o inconsciente como se fosse um órgão psíquico e
funcionasse como tal, constrói-se um inconsciente que é um campo de fluxos
livres e não codificados.
Propõe-se um funcionamento maquínico que reconheça os fenômenos
moleculares dos organismos marcados pela dispersão e a interpenetração autônoma
de suas partículas. Não se nega a existência dos organismos, mas considera-se
que eles são máquinas no sentido como a biologia percebeu; que, com tal
abundância de partes, devem ser comparados a peças extremamente diferentes de
máquinas distintas, remetendo umas às outras, maquinando umas sobre as outras e
ligando-se ao sistema complexo da vida. E se o mecanicismo for insuficiente,
por não explicar a razão para as máquinas não funcionarem por si mesmas,
necessitando sempre de uma força transcendente para fazê-lo, os autores também
vão dispensar as noções vitalistas que pretendem explicar o impulso causal dos
sistemas mecânicos através de uma “unidade individual e específica do ser vivo”.[1]
O vitalismo e o mecanicismo são considerados limitados, pois ambos
aplicam, por extensão, o mesmo princípio explicativo da realidade humana a toda
e qualquer esfera da realidade. Desse princípio, a máquina só pode ser
concebida como um mero prolongamento do organismo, uma projeção do homem sob a forma
de utensílio.
Nem vitalismo, nem mecanicismo – ambos permanecem no impasse,
justamente por manterem uma relação extrínseca entre máquina e desejo, “quer o
desejo apareça como um efeito determinado por um sistema de causas mecânicas,
ou que a própria máquina seja um sistema de meios em função dos fins do desejo”.[2]
A superação dessas duas teses é possível com a concepção do desejo como
o motor das máquinas, dessa vez através de uma relação intrínseca e profunda,
“de modo que a máquina passe ao coração do desejo: a máquina é desejante e o
desejo, maquinado”.[3]
O desejo permeia todo campo social, tanto
em práticas imediatas quanto em projetos muito ambiciosos. Por não querer me
atrapalhar com definições complicadas, eu proporia denominar desejo a todas as
formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade
de inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de
valores.[4]
Só assim, seria possível “fazer a leitura do social desde o desejo,
fazer a passagem do desejo ao político, nos quadros dos modos de subjetivação”.[5] Deleuze/Guattari propõem pensar o desejo
como um construtivismo, renunciando ao par sujeito-objeto (aquele que deseja e
aquilo que é desejado). O desejo seria maquínico, produtivo, construtivo. Nunca
desejamos só uma coisa; desejamos sempre um conjunto de coisas. Por exemplo,
uma mulher não deseja apenas um vestido; ela também deseja pessoas olhando para
ela, uma festa na qual possa usá-lo, uma cor e uma textura específicos. Da
mesma forma, um músico não deseja apenas um bom instrumento; ele quer harmonia,
sonoridade, uma plateia, um lugar etc. Dessa forma, o desejo enquanto
maquinismo vem sempre agenciado. De acordo com essa concepção, o desejo cria
territórios, pois faz uma série de agenciamentos.
[1] No
vitalismo a força vital é definida como a unidade de ação que rege a vida
física, conferindo-lhe as sensações próprias da vida e da consciência. Esse
princípio dinâmico, imaterial, distinto do corpo e do espírito, integra a
totalidade do organismo e rege todos os fenômenos fisiológicos. O seu
desequilíbrio gera as sensações desagradáveis e as manifestações físicas a que
chamamos doença (Ver MONOD, J.).
[4] GUATTARI,
F. e ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:
Vozes, 2005, p. 261.
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