Inconsciente filosófico II
Diante das novas questões globais, das emergências de um novo mundo em
que a família e a sociedade se encontram diante de novos problemas, o velho
inconsciente da psicanálise não dá mais conta.
Com a formalização da “segunda tópica”, o inconsciente vai sendo
formalizado e, consequentemente, vai perdendo sua característica intensiva e
nonsense, para se tornar uma instância recalcada. Com essa mudança, “é
exatamente a especificidade dos processos primários que tende a se perder”,[1]
e passa a fazer parte da tríade id-ego-superego. O encarceramento dos processos
primários e a pacificação do inconsciente coincidem com a evolução da
psicanálise.
Com as fases do desenvolvimento (oral, anal, fálica...), entramos na
perspectiva genética, e as instâncias psíquicas será substituídas por
diferentes formas de semiotimização – e, por que não dizer, de normalização?
“(...) Temos uma espécie de corrida de obstáculos, que vai permitir a integração
da lógica do processo primário, por etapas sucessivas, às normas do Ego, às
normas dos valores sociais, às normas dominantes.”[2]
Uma nova montagem do psiquismo. Dos conflitos do recalque primário, “que
traduzia a expressão de um conflito entre modos heterogêneos de semiótica”, à
instauração da lei de identificação com figuras personológicas.
A lei ou a ordem “não é mais uma relação conflitante entre continentes
separados, mas, sim, um processo de integração”,[3]
normalização. Entram em jogo as forças políticas da instituição familiar. A
figura da mãe que controla a fase oral (mãe que dá e tira o peito, máquina de
produzir leite), controle doméstico para a fase anal, “certa figura de
integração ao mundo dos valores paternos com a triangulação edipiana”.[4]
Junto com a triangulação edipiana, vem “a figura de submissão aos
valores dominantes com o complexo de castração”, já na fase da
pré-adolescência. Debaixo desses estratos, o inconsciente vai ficando
silencioso, mas ainda é possível falar de um inconsciente no divã do analista,
mas sem se levarem em conta “os fenômenos de singularidades (...) sua matéria
bruta”.
Nesse momento, a meta (sua satisfação) da “pulsão” (esse termo agora
serve para entender o que Freud viu do inconsciente, vamos continuar com o
termo “libido”) será buscada em meio a objetos perdidos. A lei separa o
desejante desses objetos. Podemos chamar essa manobra de raízes psicológicas da
moralidade, que são marcadas pela síndrome obsessiva por leis. A maior prova
disso fica por conta da existência do Superego como derivado da autoridade
paterna, que passa a ser a origem da consciência e o sentimento de culpa de uma
civilização inteira.
Por isso, foi preciso teorizar outro tipo de inconsciente menos
culpado, que permitisse melhor articulação com os atuais modos de
semiotimização. Um inconsciente que não seja reduto e reduzido à família. Mas
que também não fique preso às semiotimizações estruturais do significante e do
significado. Daí, a proposta do Anti-Édipo de se trabalhar com um
inconsciente aberto às influências do tempo. Ou seja, em vez de buscar um
inconsciente individual, fechado e estruturado dentro do sujeito, afirma-se
agora um sistema aberto, um “campo de fluências livres”,[5]
à procura de cada vez mais conexões, em uma produção constante.
O conceito inovador do inconsciente não está só no que foi possível
dialogar com a psicanálise freudiana, no que vimos até aqui. Deleuze já vira em
Diferença e repetição[1]
o inconsciente das livres sínteses. Em Apresentação de Sacher-Masoch,[2]
em que o inconsciente reúne as pulsões de morte e de destruição, “mas sempre
misturadas às pulsões de vida”.
No Anti-Édipo, o
inconsciente alcança seu grau político maior: como ressalta Hélio Rebelo, o
inconsciente maquínico, que compreende uma multiplicidade fluida, e abre-se
para a dimensão das intensidades, promovendo o novo.[3]
Deleuze e Guattari são os primeiros a demonstrar “a coexistência do
inconsciente com o campo social, que é a norma pela qual o princípio da
imanência estende sua abrangência, e não leva a coexistência à imobilidade.
[1] DELEUZE, G., Diferença e repetição, pp. 165-174.
[2] DELEUZE, G. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2009.
[3] CARDOSO, JR. H. R. Inconsciente-multiplicidade: conceito, problemas e práticas segundo
Deleuze e Guattari. São Paulo: Unesp, 2007.
[1] GUATTARI, F. e ROLNIK,
S., Micropolítica: cartografias do
desejo, p. 205.
[2] Idem, ibidem.
[3] Idem, p. 206.
[4] Idem, ibidem.
[5] ORLANDI, L. B. L. “Pulsão e campo problemático”. In: MOURA,
A. H. As pulsões. São Paulo:
Escuta/EDUC, 1995, p.180.
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