... o Eu - VII


Aqui já estamos na ordem do princípio de prazer, as excitações já estão ordenadas pelas catexias (investimentos), que implicam repetições que se caracterizam pela identidade. Mas Freud abre caminho para um além das repetições identitárias quando admite haver “pensamentos indesejados” que correm por fora das correntes de facilitação.

Um anseio implica um estado de tensão no ego e, em consequência disso, a representação do desejo amado (a ideia de desejo) é catexizada. A experiência biológica nos ensina que essa ideia não deve ser tão intensamente catexizada a ponto de se confundir com uma percepção, e que sua descarga deve ser adiada até que da ideia partam indicações de qualidade que comprovem que a ideia agora é real, que é uma catexia perceptiva.[1]

Freud vai permanecer clássico em suas teorias, mas temos de lhe fazer justiça em relação às suas intuições, que vão muito além da filosofia da representação. A noção de hábito ligada ao sistema nervoso dialoga com a segunda síntese passiva do tempo, mas Freud lança um dado adiante. A percepção idêntica, ou semelhante, à ideia já se encontra em neurônios pré-catexiados pelo desejo, na medida em que ambas coincidem (percepção/ideia). “Com isso, ter-se-á obtido a identidade.”[2]
Mais adiante no processo, Freud menciona as “catexias perceptuais indesejadas ou supérfluas” que se introduzem no sistema, mas que ele espera que sejam refreadas em catexias ideativas para se obter a identidade das mesmas. A preocupação consiste em manter o aparelho psíquico dentro da ordem do princípio de prazer, mesmo com o daimon intruso nessa forma de uma estranheza transcendental.
O aparelho que organiza ou tenta organizar as pulsões em princípio de prazer não consegue domar completamente os processos primários. Voltando a Deleuze, um hábito é uma disposição de expectativa com relação a alguma coisa que repete, assim como as correntes de facilitação de Freud; um hábito é um presente vivo do passado (uma marca) que antecipa o futuro.
É nesse sentido que a primeira síntese passiva do tempo tem dentro de si o passado e o futuro. O presente e o futuro estão contidos no passado. Presente e futuro são, para a segunda síntese, a repetição de uma memória-tempo, uma síntese e uma cópia finita do tempo infinito e eterno. Caberia aqui uma longa dissertação sobre o tempo, mas não é essa nossa tarefa. Deixaremos a questão para trabalhos posteriores.
A terceira síntese do tempo resume as duas primeiras, ou seja, submete o passado e o presente ao futuro que traz a novidade. No primeiro momento, a síntese do tempo submete o passado que passa a funcionar como, o tempo da condição, o presente como, o tempo das identidades produzidas pelo hábito submetido ao futuro inovador. Essa síntese garante desfazer a ordem linear do tempo, que faz a passagem do virtual ao atual.
Daqui em diante, não há fundação nem fundamento; apenas demolição, “princípio de desmoronamento do tempo”. É a terceira síntese que arrasta tudo para uma espécie de repetição sem identificações ideais. Depois de algum tempo afastado, tudo que é pré é reconvocado a comparecer. Mas essa chegada soberana do Ser Criador não passa pelos parâmetros dos “caminhos” mnêmicos da corrente neuronal; ela pressupõe uma liberação do Caos que só atinge a identidade ontológica última. É quando o “aparelho” freudiano enfrenta o que é incriado ou o que está sempre já-aí, síntese de todo o tempo, cujo presente e futuro são apenas dimensões; é o passado que recolhe todo o tempo, ele persiste e insiste como memória de onde o processo criador tira sua base.
Nesse sentido, o processo criador nunca poderia instaurar-se ex-nihilo, ou seja, sem a contribuição de uma memória que comporta informações que se reatualizem depois de constituir-se em germe do novo. Dessa forma, por um lado, todo indivíduo é uma forma estabilizada da natureza (naturada); por outro lado, o mesmo indivíduo entra em acontecimento ao se desnaturalizar. Esse processo se encontra dentro de duas repetições: a primeira é a repetição pura das livres sínteses, enquanto a segunda é a repetição ordenada do princípio do prazer.
Mas, dentro dessa última, desse individuo estabilizado (do verde da árvore), há um demônio se agitando, uma ilhota entrópica dentro de um sistema metaestável mais vasto. Por isso, dizem que somos uma interceptação de fluxos e, ao mesmo tempo, é por conta dessa condição que todo organismo diferenciado tem como destino individual diferenciar-se, desagregar-se, desapegar-se de seu núcleo germinal e ir ao encontro de sua própria morte entrópica.
Eros enquanto pulsão de conservação do presente no passado é o mesmo que será reatualizado em um novo presente vivo: processo de individuação imposto pela morte entrópica. Ou, por que não dizer, morte por apoptose? Assim como uma célula morre ativamente, quando parte de um indivíduo busca a própria morte para que uma nova individualidade possa continuar individuando-se. O verdejar do verde, nesse sentido, é um acontecer da morte. Uma atualidade de verde cede lugar à virtualização incessante do verdejar; são os continuuns virtuais que tocam a natureza naturada do verde.

Os biólogos têm razão quando, colocando o problema da hereditariedade, não se contentam em atribuir-lhe duas funções distintas, que seriam como que a variação e a reprodução, mas querem mostrar a unidade profunda destas funções ou seu condicionamento recíproco. É este o ponto em que as teorias da hereditariedade entram necessariamente numa filosofia da natureza. Quer dizer que a repetição nunca é repetição do ‘mesmo’, mas sempre do diferente como tal, e que a diferença em si mesma tem como objeto a repetição. No momento em que eles se explicam num sistema (uma vez por todas), os fatores diferenciais, intensivos ou individuantes, dão testemunho de sua persistência em implicação e do eterno retorno como verdade dessa implicação. Testemunhas mudas da degradação e da morte, os centros de envolvimento são também os precursores sombrios do eterno retorno.[3]

 Eros e Thanatus, forças que se opõem em todo organismo vivo, levando-o a seu destino, estado inorgânico. Finalmente, chegamos à terceira síntese do tempo, que se chama o Eterno retorno ou a introdução do devir como o “instante que passa” e “força-nos a pensar o devir, mas a pensá-lo precisamente como o que não pôde começar e aquilo que não pode acabar de devir”.[4]


[1]  FREUD, S., Projeto para uma psicologia científica, p. 416.
[2] Idem, ibidem.
[3] DELEUZE, G., Diferença e repetição,  pp. 407-404.
[4] DELEUZE, G., Nietzsche et la philosophie,  p. 54.

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