Corpo sem Órgãos VI
No caso do masoquismo, não é a morte que se busca, mas o
ultrapassamento do limite, em que o corpo, exageradamente organizado como se
encontra em determinadas situações, impede a ação de retorno, que seria a
condição do homo natura. O homem excessivamente humano se distancia
demasiadamente de sua casa originária. Tudo indica que esse homem não experimenta
as mortes; ele tem tanto ressentimento de sua própria morte final que não se
permite morrer em cada presente. Ele desenvolveu aquela memória dispéptica que
lhe assegura a ilusão de nunca se mover de sua linha de conforto –não é quando
a reatividade impede a ação? De acordo com Deleuze,
Até a deficiência funcional da faculdade
de esquecer resulta do fato de que esta não encontra já numa espécie de forças
reativas a energia necessária para recalcar a outra espécie e renovar a
consciência. Tudo se passa entre forças reativas: umas impedem as outras de ser
agidas, umas destroem as outras. Estranho combate subterrâneo que se desenrola
no interior do aparelho reativo, mas que não provoca menos consequência no que
se refere à atividade no seu todo. Reencontramos a definição do ressentimento:
o ressentimento é uma reação que, simultaneamente, se torna sensível e deixa de
ser agido. Fórmula que define a doença em geral.[1]
Esse efeito de morte em vida do homem do ressentimento pairou sobre o Ocidente
cristão, quando se confunde a destrutividade das forças no ato do retorno ao fluxo
germinal como algo a ser evitado a qualquer custo. Em um segundo momento,
trata-se de confundir as causas e os efeitos. Freud não utiliza o termo –
pulsão de morte – como um nome para um efeito. Não se trata da busca da morte como
um acidente da vida, da destrutividade do corpo e da saúde; algumas formas de
experimentação estariam, assim, todas condenadas por esse julgamento moral.
A própria morte biológica, como morte limpa, morte por apoptose,[2]
se incluiu na matéria do ressentimento, mas não é o “suicídio” da célula; é
altruísta, é vida desejando expansão. Em oposição a essa própria morte de todo
vivente, São Paulo, com seu sistema bem organizado, inventou a ressurreição e a
vida eterna: “E a vida eterna é esta, que te conheçam a ti como único ser
verdadeiro”, essas são as palavras de São Paulo em relação ao Cristo. Se o
terror de todo socius é esse, o de um retorno de um fluxo descodificado,
é porque ele traz consigo uma desterritorialização do que se quer preservar a
todo custo. É, de certa forma, o terror da morte em qualquer sentido.
Nem mesmo é do acidente que se trata, da dor, do sofrimento e da morte,
mas, seguindo a tese estoica, conforme Deleuze, trata-se do efeito incorporal
do que acontece no acidente. Pulsão de morte, fluxo Intensivo, gérmen
originário, ovo tântrico, corpo sem órgãos, forças que agem e forças que
reagem, não têm como meta os acidentes destrutivos e a morte banal.
Não é o caso de se fabricar uma resposta para saciar a angústia de não
se ter uma pronta. A pulsão de morte, ou os outros termos que estamos
utilizando, não é um querer necrose da vida, da célula, como no caso do
câncer, que é a morte, não é esse acidente. Assim, seria tomar a causa pelo
efeito, calando a questão e impedindo o entendimento da gênese do sentido que
se passa na trama do psíquico. Muito embora o efeito do acontecimento esteja
presente em todas essas situações, é sempre o que acontece em contexto do
acidente.
A pulsão de morte não é nem causa
eficiente nem causa final de suas supostas expressões, mas um nome para estas,
que são expressões, derivações ou destinos possíveis da pulsão originária e das
interações efetivas de nosso psiquismo com o mundo.[3]
Já vimos que, tomando esse conceito, pulsão de morte, por aproximação
do conceito de corpo sem órgãos, no segundo caso, ele não trabalha sozinho, não
cria nada sozinho, ele é quase-causa. Os autores do Anti-Édipo tiveram
muito trabalho para reunir essas duas características do corpo sem órgãos: o
improdutivo e a produção.
Parece haver dois polos opostos de improvável aproximação: os fluxos e os
cortes de fluxos da produção desejante, universal produção primária, produção
que subsume homem e natureza no mesmo nível e sem hierarquia de entidades
transcendentes: nem Deus, nem Uno. Desse modo, toda a produção está
caracterizada pelo produzir. Dito de outra forma, ao injetar o produzir no
produto, as máquinas desejantes produzem produção. Mas, sozinhas, essas
máquinas emperram.
É preciso que elas estejam ligadas a um plano de imanência que é o
corpo sem órgãos. Entre essas duas realidades, persiste uma essência conectiva
da produtividade do desejo. Temos de encontrar no Anti-Édipo esse espaço
entre o produzir e o produto. Ainda não se trata de um psiquismo; ele pode até
estar definido, mas esse espaço é livre de cortes, portanto não orgânico.
Trata-se de um território a-subjetivo, pré-individual, pré-psíquico,
ontológico. Não há prevalência das máquinas desejantes porque, nesse lugar, não
existe o sistema cortes-fluxos; é um “puro fluido” em estado de liberdade,
deslizando sobre o corpo pleno:
Um tremor entre o aquém e o além do
organismo, mas que deste ainda precisa, embora com este não se confunda um
entre aquém e um além de uma organicidade que molda as máquinas desejantes que
a pressupõem. É esse lugar complexo de um corpo pleno sem órgãos, este algo
turgindo como ‘pausa’ bem no ‘meio do processo’, [...] acoplado à produção.[4]
Mas, não sendo mero instrumento da produção, o corpo sem órgãos não é
também mera improdutividade, mas interregno pressuposto pela produtividade das
máquinas desejantes, tremor intensivo “perpetuamente rejeitado na produção”.[5]
O corpo sem órgãos, assim como o termo correlato, pulsão de morte, corresponde
ao último bunker de resistência da
vida. Por ser originária e imbatível, essa pulsão resiste não só às melhores intenções
dos homens, mas também aos dotados de intenções tirânicas.
[1] DELEUZE, G., Nietzche
e a filosofia, p. 172.
[2] Cf. Ivana Grivicich, Andréa Regner, Adriana Brondani da
Rocha. “o desenvolvimento e a manutenção dos organismos multicelulares dependem
de uma interação entre as células que o constituem. No desenvolvimento
embrionário, muitas células produzidas em excesso são levadas à morte,
contribuindo para a formação dos órgãos e tecidos. Durante muito tempo, a morte
celular foi considerada um processo passivo de caráter degenerativo, que ocorre
em situações de lesão celular, infecção e ausência de fatores de crescimento.
Como consequência, a célula altera a integridade da membrana plasmática, aumenta
o seu volume e perde as suas funções metabólicas. Entretanto, nem todos os
eventos de morte celular são processos passivos. Organismos multicelulares são
capazes de induzir a morte celular programada como resposta a estímulos
intracelulares ou extracelulares”. (Revisão de Literatura, Apoptose.
Artigo submetido em 4/4/06; aceito para publicação em 25/1/07. Disponível em
http://www.inca.gov.br/rbc/n_53/v03/pdf/revisao4.pdf.)
[3] MARTINS, A., op. cit., p. 329.
[4] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe, p. 13.
[5] Idem, p. 15.
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