O INCONSCIENTE FILOSÓFICO
A esta altura, pouco importa se falamos do Inconsciente reservatório
das pulsões ou de Ego reservatório de libido; na verdade, tudo se banha na
mesma força desejante.
Mas não é apenas na superfície do aparelho psíquico que se dá essa
política microscópica, como acreditaram os primeiros seguidores das psicologias
do comportamento. A micropolítica não se baseia na alma como unidade subjetiva,
mas no inconsciente, e não no consciente (ego), identificado como o embuste de
uma idealidade. Mas temos de reconhecer que Freud foi e voltou das profundezas
do inconsciente. Como Nietzsche ousou dizer: “Toda psicologia, até o momento,
tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às
profundezas.”[1]
Reconhecemos que as cartografias das formações do inconsciente partem
da psicanálise ou de situações que o presentificam, como na teoria das pulsões.
Haverá dificuldade em formalizar uma teoria geral, sobretudo quando se trabalha
com a tentativa de uma teoria geral, como foi o caso da psicanálise.
Na Primeira Tópica, Freud tentou organizar um mundo de significações
dividido em dois continentes: “De um lado, o Inconsciente e, do outro, o
Pré-consciente e o Consciente.”[2]
O inconsciente foi vislumbrado, a princípio, como um mundo de efervescência, e
é esse que nos interessa. “O mundo altamente diferenciado de sentidos,
enunciados, imagens e representações latentes.” Esse inconsciente não é
produzido externamente antes de ser fabricado por uma lógica particular: “Trata-se
do chamado ‘processo primário’, cuja lógica não é mais pobre nem mais rica do
que o processo secundário, e sim diferente.”[3]
A lógica do processo primário desconhece a negação, ou pelo menos tem
uma forma de “encenar a negação inteiramente diferente da lógica do processo
secundário”, que é consciente e socializado.
O processo primário desconhece a lógica de funcionamento das
significações dominantes. Inexistem contradição, independência do tempo e
substituição da realidade exterior pela psíquica, esta última realizada
exclusivamente pelo princípio de prazer. Ela funciona por deslocamentos
constantes, condensação, sobredeterminação etc. O deslocamento, como um aspecto
do processo primário, está envolvido nas vicissitudes das energias catexiais:
As intensidades catexiais (no
inconsciente) são muito mais móveis. Pelo processo de deslocamento, uma ideia
pode ceder a outra toda a sua quota de catexia; pelo processo de condensação, é
possível apropriar-se de toda a catexia de várias outras ideias.[4]
Na psicanálise, esses deslocamentos, condensações, delírios e
sobredeterminações só ocorreriam nos sonhos, nas lembranças que deles decorrem
ou nos delírios esquizofrênicos. “Leva-se o processo psíquico primário a
relacionar-se com essas lembranças, até que, pela condensação destas e pelo
deslocamento entre suas respectivas catexias, tenha plasmado o conteúdo onírico
manifesto.”[5]
Na lógica dos processos primários, encontra-se “o princípio específico
da ecologia mental”, descrito por Guattari em As três ecologias. Para
ele, tal princípio “reside no fato de que sua abordagem dos territórios
existenciais depende de uma lógica pré-objetal e pré-pessoal, evocando o que
Freud descreveu como um ‘processo primário’”.[6]
É, portanto, com Deleuze/Guattari que o inconsciente abre-se a perspectivas
abrangentes de maior alcance, muito além do teatro familiar.
[1] NIETZSCHE, F., Além
do bem e do mal, op. cit., aforismo 23.
[2] GUATTARI, F. e ROLNIK, S., Micropolítica: cartografias do desejo, p. 204.
[3] Idem, ibidem.
[4] FREUD, S. “O
inconsciente”. In: Obras
psicológicas completas. Tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1996, v. XIV, p. 186. [1915]
[5] FREUD, S. “Suplemento
metapsicológico à teoria dos sonhos”. In: Obras psicológicas completas. Tradução de Jayme Salomão. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1996, v. XIV, p. 228. [1917 (1915)]
[6] GUATTARI, F, As três ecologias, p. 38.
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