O combate IV
A maior dificuldade de combater o juízo se encontra em dois estratos: o
senso comum e o bom-senso. Quando eles concluem o papel de fazer, como se tudo
fosse normal, passa a ser incômodo pensar em desfazer o juízo. A partir de
então, renunciar ao juízo dá a impressão de nos privarmos de qualquer outro
meio de sobrevivência, meios de “estabelecer diferenças entre existentes, entre
modos de existência, como se a partir daí tudo se equivalesse”.[1]
Não é antes o juízo que estabelece critérios preexistentes de valores
maiores que nivelam a vida por baixo? O juízo é uma teologia cujos “valores
superiores” comportam sua metafísica. São valores desde o começo da tradição
filosófica, valores infinitos. São tão infinitos que não é possível compreendê-los,
nem alcançá-los com as faculdades da mente; tudo tem de passar para o lado da
fé religiosa, ou melhor, de um sono profundo vigiado por divinos sonhos. Tal
maneira de existir “não consegue apreender o que há de novo num existente, nem
sequer pressentir a criação de um modo de existência (...). O juízo impede a
chegada de qualquer novo modo de existência”.[2]
Todo combate é vital, não inclui derramamento de sangue, toda política
é micropolítica, é rizomática e não trata de formação de partidos. Há uma
impotência na tentativa de criar modos de vida por esses meios. Os modos de
vida se criam pelas próprias forças, mas longe dos riscos do bom-senso e do
senso comum. Modos de vida que se criam a partir de dentro, não quer dizer que
seja o resultado natural do jogo de forças da natureza.
O termo natural é inadequado nesse caso. Trata-se do combate do
combatente. Criar com “as próprias forças” significa afastar-se dos valores
superiores da transcendência para se afirmar no jogo de combinação de forças,
pelas forças que sabe e pode captar. Essas forças são válidas por si mesmas,
não dependem de qualquer valor superior, única forma de abolir o julgar e o
julgamento, deixar de ser juíz e réu ao mesmo tempo. Esse é o sentido da
minorização que os autores preferidos (Artaud, Lawrence, Clastres, Kafka etc.)
em Deleuze/Guattari operam cada qual em seu plano de pensamento. “(...) Tal
modo se cria vitalmente, através do combate, na insônia do sono, não sem certa
crueldade contra si mesmo.”[3]
Não se trata do mesmo princípio quanto ao pensamento? Pensar não é uma
violência contra a comodidade do Eu pensante?[4]
O combate é sempre uma violência contra uma vida cômoda. Aqui há um segredo que
desvela toda a dificuldade de se inaturarem processos de mudança: fazer existir
e não julgar requerem a instauração de processos de metamorfoses contínuas, na
medida em que fazem “disjunções inclusivas”, capazes de instaurar novas
combinações.
Desafiar o juízo equivale a mostrar o quanto “julgar é repugnante”,
porque no julgar tudo se equivale. As distinções só são possíveis ao se
desafiar o juízo. Na relação em combate, o julgamento é suspenso em detrimento
de um jogo afetivo sutil: basta saber se determinado indivíduo convém ou não
convém em determinado encontro, “isto é, se nos traz forças ou então nos remete
às misérias da guerra, às pobrezas do sonho, aos rigores da organização”.[5]
Considerar o problema por esses termos, de forças
(Nietzsche), de simpatia (Lawrence), de afectos
(Espinosa), e “não em outros termos, já supera qualquer subjetividade”.[1]
A proposta de maior alcance é fazer oposições que confundam o sistema de juízo:
a crueldade dos selvagens se opondo ao suplício dos déspotas, a insônia ou a
embriaguez dos verdadeiros combatentes contra o sonho paranoico dos teólogos, a
vitalidade intensa dos bebês em confronto com a organização dos adultos, a
vontade de potência dos nômades em oposição à vontade de domínio dos poderosos,
o combate contra a guerra. Nesse ponto, cessam as revoltas militantes e tem
início o movimento, e essa passa a ser a verdadeira revolta
Comentários
Postar um comentário