... Eu - conclusão


O devir liberta o tempo presente de sua submissão ao já passado e faz do presente e do passado os meios da afirmação do futuro.[1] Não o futuro que vira, mas de um tempo que não cessa de chegar em prelúdios de produções de diferenças sempre novas. Diante da virada do tempo, as consequências são para todos os seres que entram em processo de indeterminação. A certeza do Eu pensante se vê mergulhada no “princípio da incerteza”. O Eu se encontra invadido pela fenda do tempo, rachado pela forma vazia do tempo puro, de modo que já não se pode contar com as certezas do Eu, que, com o “tempo fora de seus gonzos”, caíram na indeterminação já não ser determinante.
Na fórmula cartesiana, o “eu sou” determina a identidade do sujeito que pensa. Mas como submeter as determinações a um sujeito indeterminado, quando ele mesmo vacila sobre o “mar das indeterminações?”. Kant mostra que, para que a existência do “eu sou” seja determinada, não basta que a determinação do “Eu penso” aja sobre ela. É preciso que a indeterminação sofra a ação da forma sobre a qual o indeterminável é determinável: a forma pura do tempo. O tempo racha o Eu: por um lado, o Eu ativo determinante; por outro, o Eu passivo indeterminado, mas determinável pela forma de determinação do tempo.
A concepção deleuziana de tempo filosófico também é importante para compreendermos sua abordagem do tema. Em O Que é Filosofia?, eles o definem como:
Um grandioso tempo de coexistência, que não exclui o antes e o depois, mas os superpõe numa ordem estratigráfica (...). A vida dos filósofos, e o mais exterior de sua obra, obedece a leis de sucessão ordinária; mas seus nomes próprios coexistem e brilham, seja como pontos luminosos que nos fazem repassar pelos componentes de um conceito, seja como os pontos cardeais de uma camada ou de uma folha que não deixam de visitar-nos, como estrelas mortas cuja luz é mais viva do que nunca. A filosofia é devir, não história; ela é coexistência de planos, não sucessão de sistemas.[2]

A existência do sujeito está determinada pelo tempo que escoa e, num sentido íntimo, pelos afectos que nos misturam. O sujeito é passivo e receptivo “aparecendo no tempo”. O Eu é passivo e se vê invadido pelo pensamento que o faz dizer “Eu penso (...)”. O “eu penso (...)” não se origina nele mesmo, nem o afecto que o afeta lhe pertence geneticamente. Ele é apenas o efeito a posteriori que se traduziu pelo sentimento-pensamento. Tudo que ele tem é um aparelho perceptivo que sintetiza a própria inteligência que o habilita a dizer: “Eu”. “Eu é o Outro ou um paradoxo do sentido íntimo.”[3] O tempo sai dos trilhos com Kant, mas é com o pensamento trágico de Deleuze que o tempo se liberta de Deus, ou seja, o tempo não está mais subordinado ao movimento. “O tempo sai da curvatura que um Deus lhe dava e liberta-se dos acontecimentos que compunham seu conteúdo. Ele deixa de ser cardinal e assume uma pura ordem.”[4]

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[1] “The time is out of joint!” (O tempo está fora dos gonzos!), essa significa a primeira grande reversão copernicana inventada por Kant. (Ver Deleuze, Crítica e clínica (Ed. brasileira de 1997, pp. 36-44). Roberto Machado lembra que “a visão antiga tem duas características principais: a subordinação do tempo ao movimento e, consequentemente, a circularidade do tempo. Dois textos de Deleuze se referem à concepção do tempo dentro dos eixos. Um é de Diferença e repetição: ‘O eixo cardo é o que assegura a subordinação do tempo aos pontos cardeais por onde passam os movimentos que ele mede (o tempo, número do movimento, tanto para a alma quanto para o mundo). O outro, bem mais recente, extraído de ‘Sobre quantro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana’, diz a mesma coisa, quase com as mesmas palavras: ‘Cardo, em latim, indica a subordinação do tempo aos pontos cardeais por onde passam os movimentos periódicos que ele mede. Enquanto o tempo permanece nos eixos, está subordinado ao movimento: ele é a medida do movimento, intervalo ou número. É assim no caso da filosofia antiga. A célebre definição aristotélica diz que ‘o tempo é o número do movimento segundo o anterior e o posterior’, e, como o movimento circular, o movimento das estrelas fixas é o movimento perfeito, o tempo também está subordinado ao curso do mundo, é como que dobrado, curvado, circular, cíclico”. (MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009,  p. 109.)
[2]  DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Qu’est-ce que La philosophie?, pp. 43-44.
[3] DELEUZE, G., Diferença e repetição,  p. 151.
[4] BRUNO, M., Lacan & Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer, p. 180.

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