Final - corpo sem órgãos


O sistema mais sofisticado de pensamento, as teorias científicas mais bem elaboradas, tudo encontra na superfície deslizante do corpo sem órgãos seu limite: ele é a ascensão e a queda de tudo. Ao homem, com seu intelecto e razão, coube a bravura de criar a cultura e a sociedade que nela se mantém.
A razão inventou os valores de bem e de mal com o intuito de apaziguar o inferno das diferenças. Mas os sistemas humanos enfrentam a natureza das forças (pulsão de morte) do corpo sem órgãos que, tanto interna quanto externamente, não deixará de cumprir seu destino essencial de destruição.
Pulsão de morte agindo no interior do homem, perturbando a ilusória quietude do eu e do supereu. O corpo sem órgãos agindo no meio social, ao repelir as máquinas desejantes, funciona como elemento de perturbação social. Por isso, no Anti-Édipo, o corpo sem órgãos é pensado por fora das linhas que poderiam usá-lo em meio às concepções da tradição, que procura colocar tudo sob um ponto de partida e tudo unificar.
“O corpo sem órgãos não é a testemunha de um nada original, muito menos o resto de uma totalidade perdida. Sobretudo, não é uma projeção; nada tem a ver com o corpo próprio ou com uma imagem do corpo.”[1] Não é por acaso que O Anti-Édipo o chama de “superfície deslizante, opaca e tensa”, estranha superfície que permeia “máquinas-órgãos”, fluido amorfo, líquido que escorrega por pequenas brechas.
Para os autores, o problema da psicanálise é que ela ficou no meio do caminho. Freud negou sua maior descoberta (a libido), acabou por neutralizá-la, voltando-a contra a vida. Nesse mesmo sentido, o sistema capitalista se valeu dessa contradição, usando a morte como significante, a “casa vazia” que é deslocada para toda parte a fim de tapar buracos esquizofrênicos. Capitalismo e cristianismo operam um casamento, não desejam a morte, mas o que desejam já está morto,[2] a produção desejante, a produção de produção.
A questão maior é encontrar o ponto que liga as quantidades intensivas do corpo sem órgãos e a formação dos órgãos – esse ponto de passagem do mundo pré-subjetivo, pré-psíquico e ontológico para o mundo das coisas formadas. Daí a necessidade de uma reviravolta nos conceitos psicanalíticos do inconsciente e do desejo, bem como a nova interpretação das pulsões, que passam a vigorar nos termos do Anti-Édipo. Contamos com um elemento que vai à superfície deslizante do corpo sem órgãos, milhares de idas e vindas em um instante, as máquinas desejantes.


[1] ORLANDI, B. L., Unimontes Científica, v. 6, n.1, jan-/jun. de 2004. Ver também do autor, “Linhas de ação da diferença”. In: ALLIEZ, Eric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 49-63.
[2] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe,  p. 376.

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