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Linguagem

Pensar a linguagem através da linguagem já constitui um imenso desafio. Nos acostumamos a pensar com palavras, sem nem mesmo exercitarmos uma pequena desconfiança acerca desse procedimento que se tornou senso comum e bom-senso. Daí, dessa convenção, deriva toda a nossa crença na verdade, seja religiosa ou de outra forma de conhecimento. Acreditamos no verdadeiro sem nem questionarmos se tudo não passa de um arranjo de palavras, devidamente arrumadas, para nos dar a aparência do verdadeiro. Mas as palavras que compõem a linguagem não passam de uma redução arbitrária do todo que elas pretendem reduzir. Sentimos sensações nunca ditas, isso porque as palavras só podem representar um mínimo do que sentimos. A imensa maioria de nossas sensações puras se perdem sem serem representadas na linguagem. Grande parte do mundo passa diante de nossos olhos e sentidos sem que possamos captá-la. Isso porque somos prisioneiros da linguagem. Nos afastamos demais de nossa "casa", ou, dizendo de

Crenças e valores

Um homem estava deitado em seu leito de paralisia por mais de três décadas. Esperava que um dia alguém lhe lançasse no tanque de águas sagradas no momento exato em que um suposto anjo revolvesse as águas. Mas ninguém se interessou pelo seu caso, até que um dia o mestre se aproximou e lhe perguntou: "O que queres que eu faça?”Ele lhe respondeu: "Que eu ande Senhor". Disse-lhe, "Levanta, pega a tua cama e anda". Assim ele o fez. Pegou os seus trapos da cama e saiu regozijando-se por perceber que andava. Mais adiante, os fariseus, guardiões da tradição religiosa, se inquietaram com o fato de o homem estar andando. No entanto, não era o fato de ele ter estado mais de trinta anos paralisado numa cama, mas pela razão de o homem estar carregando uma cama no dia de sábado. Não houve nenhuma manifestação de alegria por estar andando, mas uma reação moral ao fato de estar "transgredindo" uma regra moral. A tradição quando supera os valores da vida, op

Saídas

Entramos no mundo chorando e sorrindo sem saber por quê. Partimos de uma imaginação vinda do Outro, que nos diz sermos o que somos: nome, crenças, valores, normas e atitudes são provenientes do Outro, que funciona em nós como um espelho. Mas o fato crucial e trágico é que não temos como saber que somos o desejo do Outro, e, no entanto, somos de fato determinados por esse Outro no qual (ou “contra o qual”?) nos debatemos. Acreditamos por falta de uma linguagem que nos possibilitaria discordar. Esse fato, o modo como entramos no mundo, marca uma primeira atitude política em nossa vida. Um dia teremos que nos revoltar, nos insurgir contra o que nos tornamos sem saber o que ou como. Essa primeira insurreição, necessária, marca os processos de singularização. Um indivíduo - ou um povo, uma sociedade - precisa se insurgir, propondo, de início, uma questão, sendo ela: o que estou permitindo que façam comigo? Daí, se precipita um processo que não tem previsão de acabar. Para que a vida seja é

Realidade

A trilogia Matrix mostra a realidade de Matrix e o deserto do Real. É   uma ficção que toma como pano de fundo o belo texto Simulacro e simulação de Jean Baudrillard . O filme coloca em questão a realidade e a ilusão. Depois de assistirmos ao filme, saímos pensando que a vida humana pode ser uma ilusão e que haveria alguém manipulando dados. Inspirado em Lacan, Zizek fala de três realidades ou de três níveis do Real. Para ele, existe o Real imaginário que marca a nossa entrada no mundo e que permanece de alguma forma por toda a nossa vida.   Entramos no mundo sofrendo e sorrindo, imaginando o “eu te amo” da mamãe, quando ainda não dispomos dos significados do amor e temos de responder com imaginações. O que ela quer dizer com o “eu te amo?”. Não que o imaginário seja algo único da infância, os adultos também imaginam. A fantasia é pura imaginação. O imaginário é uma realidade imaginária. O segundo Real já faz parte do simbólico. O que é o simbólico? É quase tudo que construímos e que

“Se Deus não existe...”

...Nada é permitido?   Trata-se da fórmula   dos “ Irmãos Karamazov", de Dostoiévski, que reza “se deus não existe e a alma é imortal, nada é pemitido”. A razão pura pratica não leva em conta o que prevalece no sujeito, o desejo de atingir o pleno gozo, mesmo sendo esse gozo impossível. A história mostra exatamente o reverso da máxima. Se Deus existe tudo é possível em nome dEle. Basta olhar a Idade Média, as cruzadas, as fogueiras, os enforcamentos, a caça às bruxas. Que tal ler de novo o Maleus (Martelo)? Outra sugestão, ler Vigiar e punir de Foucault, o suplício de Demien. Rever o passado do Antigo Testamento, todos os assassinatos de Moisés, verdadeiro etnocídio. Ninguém podia sobreviver, nem os primogênitos. Muito sangue! Um Deus ciumento que exigia limpeza étnica. A Bíblia está cheia de relatos de estupros, genocídios, homicidios, assassinatos bárbaros, crueldade, machismo, homofobia, e sanguinolência dos homens religiosos em número aproximado de 2.270.375 mortes (Wikipéd

Micropolitica

Talvez o maior personagem do épico ‘Senhor do anéis’ seja o esquisito Smigol.   A estranheza de Smigol sintetiza toda a narrativa do filme. O que se passa em nível macro nas lutas cósmicas entre forças das trevas e forças do bem, se passa ao mesmo tempo no micro território subjetivo da cabeça do solitário e desprezado Smigol. Não tem como escapar, antes de haver lutas de classes, existe dentro de nós um confronto de forças que nos obrigam a criar e agir no mundo. A maneira como resolvemos esse conflito determina a eticidade de nossas vidas. Smigol se esconde de seu passado esgueirando-se por entre as fendas das rochas, mora no submundo, em cavernas úmidas e sombrias. Em seu desamparo e ódio que atrai sobre si, ele tem de ser forte. É um anômalo que carrega dentro de sua cabeça um duplo enigmático. Dois indivíduos lutam dentro da criatura, um homem perigoso e um animal: o animal é exterior, o homem que ele foi está evanescente em seu interior. É a subversão do homem que tem dentro de s

Eu te amo

O termo que se tornou popular, “Freud explica”, deveria incluir outro mais abrangente, “Lacan explica Freud”. O que faz com que esses dois pensadores ocupem um lugar tão importante na história do pensamento? É que eles realmente explicaram ou chegaram muito perto de explicar tudo o que se passa nos escombros de nossa mente. Vejamos por exemplo a expressão muito comum entre o amantes, o “eu te amo”. Seguindo o pensamento dos dois, o que o indivíduo está dizendo com o “eu te amo”? Começamos desvendado o enigma do “Eu que pensa amar” nas alturas de um apaixonamento. O sujeito faz de si uma auto-imagem ideal, aquilo que ele gostaria de ser e, ao mesmo tempo, como gostaria que os outros o percebessem. Seria a imagem que o indivíduo usa para impressionar o outro. Esse outro é o que vigia e motiva o indivíduo a dar tudo de si para o impressionar. Concluímos que o “Eu ideal” é imaginário. Mas o indivíduo em questão acredita que ele é isso que imagina. Essa imagem nasce da relação com um out

Justiça cega [João, 8: 1 – 11]

No texto da referida “mulher adúltera” fica evidente a figura de Artemis [deusa da justiça – Diké ] com uma venda nos olhos, uma analogia à cegueira da justiça. Não do princípio de imparcialidade desta, mas da patologia da mesma. O que é justiça? O que é justo? É dar a cada um aquilo que lhe pertence, seja um bem material, seja uma atribuição na justa medida, como demonstrou Aristóteles na metáfora da régua de chumbo, um instrumento métrico que pode fazer os contornos da matéria medida. No caso bíblico, trata-se de uma mulher pega em flagrante adultério, baseada na lei mosaica do Antigo Testamento que condenava os adúlteros a morrer sob pedradas. Toda lei é cega, por si só não pode ser contextualizada. É a fria letra da prerrogativa legal. A mulher teria de ser morta a pedradas, como ainda acontece em algumas teocracias fundamentalistas. A condenada deve ser enterrada numa praça pública deixando-lhe apenas a cabeça acima do solo para receber, indefesa, os golpes das pedradas da turba d

O filho pródigo (Lucas, 15: 11 – 32)

Existe outra maneira de ler a parábola do “Filho Pródigo”, além da interpretação que se fez dela?   Sob   outra perspectiva, o centro da questão pode não ser o de uma moral de servidão, como a cristandade interpretou, mas de uma Ética de afirmação. O que importa não é o filho que fica, mas o filho que vai. Os filhos existem para ir mesmo, e muitas vezes a ida é traumática, sem planejamento e sem acordo entre as partes, quando é assim, são os pais que ficam sofrendo em casa e o filho vai cheio de culpa. O que os pais não entendem é que eles são apenas meios para os filhos entrarem no mundo. São meios para que a ida para o mundo seja a menos traumática possível.   O filho pródigo é um forte, ele está enfrentando toda a concepção de família, de igreja e de mundo. Uma solidão de uma escolha tão radical para abrir caminhos no mundo não foi possível ao filho que fica em casa. Mas é o filho pródigo que vai abrir caminhos para o irmão sair mais tarde. Nada aconteceria no mundo se só existisse

Filosofia cristã

Existe uma filosofia cristã? Pode-se dizer que existem filósofos cristãos e teólogos com um pensamento filosófico: São Tomás de Aquino, Dun Scott, Blaise Pascal, Kierkegaard, dentre muitos outros. Esses, quando filosofando, fazem refletir o compromisso que têm em relação às suas crenças, o que pode comprometer em certo sentido o exercício do pensamento livre. Vamos tomar um em especial que não é considerado filósofo, mas criou um sistema que, assim como Platão, dominou o ocidente,   São Paulo dos Atos dos Apóstolos e das Epístolas. Como filósofo, ele tem as prerrogativas de um Platão traduzido para o povo, ou seja, aquilo que Platão teoriza, no seu motivo de seleção das cópias bem fundadas (teoria das Ideias), tem uma forte semelhança com a cristologia paulina. Platão com as Ideias ícones, São Paulo com Cristo, o Modelo.   Ideias bem fundadas, Cristo o fundamento da Lei. Platão quer distinguir a essência e a aparência, o inteligível e o sensível, a ideia e a imagem falsificada, o

Eu sei o que você está sentindo...

Dizemos isso procurando ser (sim)páticos em relação ao outro, mas na verdade, nunca saberemos o que o outro está sentindo, somos limitados por nossa condição reduzida a nós mesmos. A idéia da empatia só pode ser afirmada plenamente nos termos de uma ficção, como a que aparece nos dois filmes: "Energia Pura" e "A espera de um milagre". Nesses casos, os personagens seguram firmemente o outro para que sinta e veja tudo o que se passa na vida do outro, tudo que experimenta em uma dada situação:  um animal que está sendo abatido covardemente e a verdadeira história de um crime violento não resolvido. Nos dois casos, ao entrar em contato com a agonia do outro, os indivíduos percebem a impossibilidade de sentir o sentimento do outro, impossíbilidade de não poder se deslocar de si mesmo e a impossibilidade do desejo de entrar na situação alheia e dolorosa. São situações da experiência limite de morrer. O afeto de morte é insuportável no corpo de quem não está morrendo. Mor

Caminho

Já foi dito em algum lugar, “caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar...”. As caminhadas e os caminhos são menos os espaços e os deslocamentos e mais a intensidade que se experimenta ao caminhar. Mesmo quando se trata dos grandes caminhos que vão de São Tiago de Compostela ao Caminho de Abraão. São longos trajetos, percorridos por grandes homens que emprestam seus nomes ao caminho. Caminhadas épicas onde o que importa não é tanto o trajeto percorrido, mas sim os acontecimentos que delas decorrem. Ninguém precisa se orgulhar de ter feito essa ou aquela caminhada, esse orgulho inútil já denuncia a futilidade da experiência.  Não faz nenhum sentido a apropriação da indústria do turismo em relação às “caminhadas sagradas”, o sagrado não é o caminho, e muito menos sagrado é o passeio entre esses caminhos percorridos. É possível que a maioria das pessoas não experimentem nada ao pisarem aquele chão de terra seca. Daí, a trajetória ser menos espiritual do que o aconteciment

Amor ao próximo possível

Vimos que a impossibilidade do amor ao próximo consiste da intolerância radical do ser humano a qualquer alteridade vinda por parte do próximo. Não suportamos o excesso de gozo do próximo, não aceitamos conviver com a diferença do próximo. É tarefa da moral de rebanho erradicar as diferenças que escapam ao ponto de tornar o “próximo” o mais próximo possível a fim de torná-lo semelhante. O que confirma a impossibilidade de amar o próximo ainda vivo. O amor ao próximo só é possível com o “próximo morto”, depois de erradicar a diferença e proclamada a fantasia do rebanho, quando a alteridade estiver silenciada no interior do próximo, então se obtém a forma de “amor” mais condicional existente, “amor de rebanho”. “Amo-te por seres um como eu mesmo sou”.  O silêncio do rebanho é para evitar o confronto com a verdade traumática, do fluxo louco que não se pode registrar e codificar. Verifica-se uma longa sucessão de medidas pedagógicas e disciplinares para se confirmar um rebanho: uma taxi

Amor ao próximo

Compreendemos melhor por paradoxos, por isso vamos expor duas sentenças contrárias para fazer o efeito necessário: o “ama ao teu próximo como a ti mesmo” e “o inferno é o outro” que se conflita diretamente com a inocência da primeira. Não vamos ficar apenas com as idéias de cada sentença, vamos pensar na possibilidade do encontro com o “próximo” como o Real impossível, ou seja, o próximo é o impossível. Slavoj Zizek, seguindo Lacan, diz que o próximo é o Real e que o encontro com o Real é impossível, logo, “o amor ao próximo” é impossível. Isso porque o encontro com o Real é da ordem de um trauma que todo mundo quer evitar. Vamos pensar que, para (com)viver com o próximo em amor , seria necessário amá-lo como ele mesmo é, aceitá-lo como todos os seus vícios, seus hábitos e suas chatices.  Imagina um “próximo” que fuma vivendo próximo de seu “próximo” que abomina o cheiro de cigarro. Por aí, já se percebe que tal encontro é traumático. Todo mundo quer viver em segurança, no sossego,

Deus...

Deus...  para que é que serve? Carecemos de um nome que totalize o Ser ou que nos faça acreditar que o impossível possa ser banido da existência. Um nome cuja significância possa encerrar a infinita cadeia de significantes, que possa tapar o furo de toda constituição dos sujeitos. Devemos à Freud essa teorização da pulsão de morte, uma força bruta que nos habita, potência de demolição de todas as formas organizadas. O que nos ocorre é a realidade de uma falta constitutiva/excesso na ordem do Ser. O pano de fundo inarrável de todo ser. Um furo diabólico que jamais permite a tão almejada totalização.  Olhamos o mundo como se fosse organizado e harmônico, um belo mundo, de dias ensolarados e noites estreladas, tendo por trás do sol e das estrelas um bom Deus que nos ama e cuida. Com essa visão de mundo, esperamos afastar de nossas consciências o fantasma de um eu além do humano, mundo selvagem que não se deixa subjetivar na cultura civilizada. Os nomes: Razão, Civilização, Pai, Deus

A onda

O filme mostra como uma turma de alunos pode ser arrastada para um devir sombrio e se transformar num grupo de pilhagem. Um professor (Rainer Wegner) de ciência política, lidando com uma turma desinteressada decide fazer uma oficina prática para ensinar o sentido do conceito Autocracia. Dirigido por Denis Gansel, “A onda’’ nos conduz ao limite insuportável entre o estado sóbrio de um devir alegre e a paranóia do poder.  A princípio tudo vai bem, as intenções são boas e funcionam: a turma de adolescentes se motiva para as aulas, mas sem perceber, o professor é arrastado pela onda que se apropria dos alunos. A onda é mais do que um grupo de adolescentes, é uma massa que só é possível quando afetada por um devir fascista que cresce como virose. Em pouco tempo, os alunos descobrem o poder da unidade e passam a ameaçar os poucos que não se alinharam à ideologia da Onda. Quando Wegner perde o controle é porque um outro corpo substituiu o corpo de alunos. A onda é um corpo que se desprend

Árvore

Uma árvore pressupõe um ponto fixo enraizado com relativa extensão vertical. Mesmo quando se trata do “maior cajoeiro do mundo” que se multiplicou em muitos, é sempre a partir de um pivô principal que se origina. A imensa árvore nordestina conta com um ponto de partida, um começo que é primeiro em relação às demais unidades. No caso é uma multiplicação do Um. Usamos a botânica para aplicar a figura da árvore à lógica que organiza o pensamento e, por extensão, a vida e o mundo. O verdadeiro e o falso passam a depender das raízes, não se pode pensar se não passar pelas raízes. Se você não estiver falando a partir “de” não será ouvido. Como pode estar falando se não passar por determinados enquadres, se não está dentro do que se disse antes? A árvore da vida é muito menos uma questão de botânica e mais de formação do pensamento. Nesse caso, o texto que fala da árvore da ciência é mais filosófico e menos religioso. É toda uma civilização que se construiu por derivação de tais folhas pro

Formigas

Por que não extinguimos as formigas? Por que elas sobrevivem a uma certa tecnologia que tem como objetivo a sua extinção? Por que sendo elas tão ”indefesas” e “frágeis” em relação a soberania do homem, ainda assim são a maioria? O império das formigas, que compreende incontáveis formigueiros, tem uma lógica de funcionamento muito semelhante a dos ratos. Formigas fazem rizoma, a organização do formigueiro se assemelha às partículas de quantas, só a física contemporânea pode explicar a resistência das formigas e sua lógica de coexistência com a natureza. São seres rizomáticos conforme Deleuze/Guattari se conectam a qualquer parte e em qualquer lugar. O ponto de partida também serve de chegada, o meio também é um começo. Um rizoma não é excludente, não há “terceiro excluído” no rizoma, ou seja, exclusões do tipo “isso ou aquilo” que se remete à lógica da raiz que é um sistema invariável e constante.  O rizoma é inclusivo com base na conjunção “e”, “e”, “e”. As formigas inserem novas

Um deus...

        Nos dias em que a natureza mostra a sua força devastadora, fala-se mais de Deus. Um sobrevivente solitário e ilhado nas montanhas pode enterrar seus familiares ao mesmo tempo em que declara, “foi por Deus...”. Outros tantos, em meio ao cenário devastado, tendo perdido tudo, igualmente repetem, “só Deus...”. No silêncio, que segue o final de cada sentença fica a impotência dos sujeitos que, por um lado, não “podem” atribuir à Deus a causa final de suas tragédias, por outro lado, atribuem a Ele a razão do pouco que lhes restaram. É mais fácil se comportar assim, dizendo “Deus” no lugar de tudo o mais que se possa pensar, dizer ou fazer ou evitar tragédia ainda maiores. De certa forma, o ser humano derrotado pela dor , em seu silêncio, responsabiliza Deus. Em algum lugar, disseram que pelo menos os justos não sofreriam nenhum dano. Mas não é assim que ocorre normalmente, o avião cai e morrem “justos e injustos”.  Ninguém pode dizer que um bebê de seis meses seja injusto, o fat

Indefinidos...

Os indefinidos é uma estratégia de combate da vida. Os nômades souberam transformá-los em uma máquina de guerra. Tal máquina se caracteriza pela capacidade de deslocamentos contínuos, o que põe tudo em estado de indefinição. Nesse sentido, é inútil construir muralhas para impedir a passagem dos nômades através das fronteiras, eles não têm interesse no poder do Estado, estão sempre de passagem para um outro lado, nesse sentido, não é do Estado que se servem. É só um procedimento de passagem, cruzar linhas, fazer dos mapas as suas próprias linhas de fuga. Uma máquina que não tem a guerra como objeto, não derrama sangue e não mata. A máquina de guerra nômade não é uma propriedade de um grupo, é um modo de vida que se subtrai da própria vida, uma imitação da vida. Um modo de escapar, de se esquivar das condições intoleráveis no mundo que tem como finalidade a definição da vida em formas de expressão: feio/bonito, baixo/alto, morto/vivo, pobre/rico, homem/mulher, diabo/deus. O traço que se

Hierarquia

A antropologia de Pierre Clastres descreve tipos de sociedades “contra o Estado”. Não que essas sociedades sejam contra o Estado, mas porque elas estão de tal forma organizadas que não permitem a permanência de um déspota pelo tempo que seria necessário à formação de um Estado. O sistema de liderança é móvel e horizontal, não há tempo para a cristalização de hierarquias no seio da sociedade. Daí, serem reconhecidas como “Sociedades Contra o Estado”. E nem adianta alegar que tais sociedades se encontrariam em um estado primitivo da evolução, elas são assim mesmo, sem Estado. De uma certa forma, imitam a vida. Quando pensamos na vida, não encontramos nenhuma forma de hierarquia que a sustente. Não há valores na vida que sobreponham uma ordem de baixo para cima, valores maiores e menores. A vida é um conjunto ilimitado, sem fronteiras interiores ou exteriores. Não há maior nem menor na vida. Por isso, a vida não se remete a um objeto nem deriva de um sujeito. Não há em cima nem embai

Ratos

Por uma questão de sobrevivência, os ratos são especialistas em fugas. É da natureza desses pequenos animais fugir de todos, de gatos, de cachorros, dos humanos, das aves de rapina e, inclusive, de seus semelhantes. Ninguém é confiável quando se trata de ratos. Por isso, eles desenvolveram os sentidos ao extremo. A exterminação desses roedores é impossível dada a sua competência em criar linhas de fuga eficazes. As tocas dos ratos são de uma engenharia supreendente. Os arquitetos têm muito a aprender com as construções subterrâneas dos ratos. Talvez a força de um rato possa ser medida a partir de sua capacidade em lidar com o indefinido. As condições de vida de um rato faz dele mesmo um centro de possibilidades. Uma vida cercada de impossíveis, torna o impossível um caminho de “condições de possibilidades”. Os ratos vivem o tempo todo no limite do que podem. As condições em que se encontram lançados, em um mundo de indefinições e incertezas, fazem com que experimentem alternativas

Água

Imagem
Qual é a imagem da água? Da água que cai das nuvens em forma de chuva, da que escorre subterrânea, da que se arrasta nos rios, das águas da fonte, dos lagos dourados ou cristalinos? Não há propriamente a imagem da água em nenhum desses casos, a imagem é criada pelos contornos, das margens que o olhar humano capta. Enquanto força sem imagem, a água, o espelho d’água, o toque da água, o frescor - tudo isso nos arrasta para sensações indefinidas - só que não pensamos nisso. As crianças lidam maravilhosamente com as poças d’água que recobrem a grama logo após as fortes chuvas de verão. Quem não se lembra de uma cena como essa: a grama fina e verde suavemente recoberta pela água limpa da chuva. As águas de um pequeno lago que deságua na areia ou na grama são cenas que precipitam em nós as mais sublimes sensações. Todas as imagens que estou descrevendo vem das bordas: a grama verde e a suavidade da fina camada de água. O que isso causa na percepção e nos sentidos? São puras sensaçõe

Sabiá

Estamos findando a primavera e com ela se despede também o canto dos sabiás que vão encerrando mais um ciclo de reprodução. Eles fazem um ritornelo, que é um canto de sedução e marcação de território, uma política de coexistência na natureza. Os sabiás parecem ser especialistas nessa espécie de cântico. Cantam numa época específica e em uma região específica das montanhas. Um espetáculo sonoro para os ouvidos humanos, mas para eles, uma questão de sobrevivência. “O mundo é sonoro, é ótico”,diz o filósofo Gilles Deleuze. E quando já não escutamos o mundo, é porque o perdemos. Perdemos completamente o mundo. Só os especialistas entendem os sons e as imagens do mundo. O mundo passa despercebido diante dos sentidos da maioria dos humanos. Tamanha tragédia tem a sua origem na formação da consciência, ou seja, “ter consciência” é, ao mesmo tempo, “perder a consciência” de um resto incomensurável. Nossos sentidos se condicionam pela busca das finalidades, queremos o mundo para as nossas fin

Experimentação

Não importa se concordam ou não quando se diz que a vida é experimentação. Pouco importa se os moralistas se revoltam contra a realidade de sermos todos experimentadores. A revolta dos mais sérios indivíduos é sempre contra o inexorável fato de que somos atravessados por experimentações. Você é experimentador e pronto. É perigoso experimentar? É desde o princípio perigoso viver. Mas, ao mesmo tempo, não se dá um passo na vida sem que algum tipo de experimentação tenha que ser iniciada em qualquer nível. Experimentar é ensaio e erro. Mas há os grandes experimentadores e os pequenos. Geralmente, o mundo caminha nas mãos dos grandes. Uma criança é um grande experimentador até o momento em que os adultos interceptam as linhas do mapa experimental das crianças. Para uma criança começar a andar é preciso fazer infinitas tentativas, muitos cálculos de equilíbrio, muitas quedas até a chegada do momento fatal em que ela se põe ereta sobre os pés. O mundo de um indivíduo é justo do tama