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Mostrando postagens de janeiro, 2011

Árvore

Uma árvore pressupõe um ponto fixo enraizado com relativa extensão vertical. Mesmo quando se trata do “maior cajoeiro do mundo” que se multiplicou em muitos, é sempre a partir de um pivô principal que se origina. A imensa árvore nordestina conta com um ponto de partida, um começo que é primeiro em relação às demais unidades. No caso é uma multiplicação do Um. Usamos a botânica para aplicar a figura da árvore à lógica que organiza o pensamento e, por extensão, a vida e o mundo. O verdadeiro e o falso passam a depender das raízes, não se pode pensar se não passar pelas raízes. Se você não estiver falando a partir “de” não será ouvido. Como pode estar falando se não passar por determinados enquadres, se não está dentro do que se disse antes? A árvore da vida é muito menos uma questão de botânica e mais de formação do pensamento. Nesse caso, o texto que fala da árvore da ciência é mais filosófico e menos religioso. É toda uma civilização que se construiu por derivação de tais folhas pro

Formigas

Por que não extinguimos as formigas? Por que elas sobrevivem a uma certa tecnologia que tem como objetivo a sua extinção? Por que sendo elas tão ”indefesas” e “frágeis” em relação a soberania do homem, ainda assim são a maioria? O império das formigas, que compreende incontáveis formigueiros, tem uma lógica de funcionamento muito semelhante a dos ratos. Formigas fazem rizoma, a organização do formigueiro se assemelha às partículas de quantas, só a física contemporânea pode explicar a resistência das formigas e sua lógica de coexistência com a natureza. São seres rizomáticos conforme Deleuze/Guattari se conectam a qualquer parte e em qualquer lugar. O ponto de partida também serve de chegada, o meio também é um começo. Um rizoma não é excludente, não há “terceiro excluído” no rizoma, ou seja, exclusões do tipo “isso ou aquilo” que se remete à lógica da raiz que é um sistema invariável e constante.  O rizoma é inclusivo com base na conjunção “e”, “e”, “e”. As formigas inserem novas

Um deus...

        Nos dias em que a natureza mostra a sua força devastadora, fala-se mais de Deus. Um sobrevivente solitário e ilhado nas montanhas pode enterrar seus familiares ao mesmo tempo em que declara, “foi por Deus...”. Outros tantos, em meio ao cenário devastado, tendo perdido tudo, igualmente repetem, “só Deus...”. No silêncio, que segue o final de cada sentença fica a impotência dos sujeitos que, por um lado, não “podem” atribuir à Deus a causa final de suas tragédias, por outro lado, atribuem a Ele a razão do pouco que lhes restaram. É mais fácil se comportar assim, dizendo “Deus” no lugar de tudo o mais que se possa pensar, dizer ou fazer ou evitar tragédia ainda maiores. De certa forma, o ser humano derrotado pela dor , em seu silêncio, responsabiliza Deus. Em algum lugar, disseram que pelo menos os justos não sofreriam nenhum dano. Mas não é assim que ocorre normalmente, o avião cai e morrem “justos e injustos”.  Ninguém pode dizer que um bebê de seis meses seja injusto, o fat

Indefinidos...

Os indefinidos é uma estratégia de combate da vida. Os nômades souberam transformá-los em uma máquina de guerra. Tal máquina se caracteriza pela capacidade de deslocamentos contínuos, o que põe tudo em estado de indefinição. Nesse sentido, é inútil construir muralhas para impedir a passagem dos nômades através das fronteiras, eles não têm interesse no poder do Estado, estão sempre de passagem para um outro lado, nesse sentido, não é do Estado que se servem. É só um procedimento de passagem, cruzar linhas, fazer dos mapas as suas próprias linhas de fuga. Uma máquina que não tem a guerra como objeto, não derrama sangue e não mata. A máquina de guerra nômade não é uma propriedade de um grupo, é um modo de vida que se subtrai da própria vida, uma imitação da vida. Um modo de escapar, de se esquivar das condições intoleráveis no mundo que tem como finalidade a definição da vida em formas de expressão: feio/bonito, baixo/alto, morto/vivo, pobre/rico, homem/mulher, diabo/deus. O traço que se

Hierarquia

A antropologia de Pierre Clastres descreve tipos de sociedades “contra o Estado”. Não que essas sociedades sejam contra o Estado, mas porque elas estão de tal forma organizadas que não permitem a permanência de um déspota pelo tempo que seria necessário à formação de um Estado. O sistema de liderança é móvel e horizontal, não há tempo para a cristalização de hierarquias no seio da sociedade. Daí, serem reconhecidas como “Sociedades Contra o Estado”. E nem adianta alegar que tais sociedades se encontrariam em um estado primitivo da evolução, elas são assim mesmo, sem Estado. De uma certa forma, imitam a vida. Quando pensamos na vida, não encontramos nenhuma forma de hierarquia que a sustente. Não há valores na vida que sobreponham uma ordem de baixo para cima, valores maiores e menores. A vida é um conjunto ilimitado, sem fronteiras interiores ou exteriores. Não há maior nem menor na vida. Por isso, a vida não se remete a um objeto nem deriva de um sujeito. Não há em cima nem embai

Ratos

Por uma questão de sobrevivência, os ratos são especialistas em fugas. É da natureza desses pequenos animais fugir de todos, de gatos, de cachorros, dos humanos, das aves de rapina e, inclusive, de seus semelhantes. Ninguém é confiável quando se trata de ratos. Por isso, eles desenvolveram os sentidos ao extremo. A exterminação desses roedores é impossível dada a sua competência em criar linhas de fuga eficazes. As tocas dos ratos são de uma engenharia supreendente. Os arquitetos têm muito a aprender com as construções subterrâneas dos ratos. Talvez a força de um rato possa ser medida a partir de sua capacidade em lidar com o indefinido. As condições de vida de um rato faz dele mesmo um centro de possibilidades. Uma vida cercada de impossíveis, torna o impossível um caminho de “condições de possibilidades”. Os ratos vivem o tempo todo no limite do que podem. As condições em que se encontram lançados, em um mundo de indefinições e incertezas, fazem com que experimentem alternativas

Água

Imagem
Qual é a imagem da água? Da água que cai das nuvens em forma de chuva, da que escorre subterrânea, da que se arrasta nos rios, das águas da fonte, dos lagos dourados ou cristalinos? Não há propriamente a imagem da água em nenhum desses casos, a imagem é criada pelos contornos, das margens que o olhar humano capta. Enquanto força sem imagem, a água, o espelho d’água, o toque da água, o frescor - tudo isso nos arrasta para sensações indefinidas - só que não pensamos nisso. As crianças lidam maravilhosamente com as poças d’água que recobrem a grama logo após as fortes chuvas de verão. Quem não se lembra de uma cena como essa: a grama fina e verde suavemente recoberta pela água limpa da chuva. As águas de um pequeno lago que deságua na areia ou na grama são cenas que precipitam em nós as mais sublimes sensações. Todas as imagens que estou descrevendo vem das bordas: a grama verde e a suavidade da fina camada de água. O que isso causa na percepção e nos sentidos? São puras sensaçõe

Sabiá

Estamos findando a primavera e com ela se despede também o canto dos sabiás que vão encerrando mais um ciclo de reprodução. Eles fazem um ritornelo, que é um canto de sedução e marcação de território, uma política de coexistência na natureza. Os sabiás parecem ser especialistas nessa espécie de cântico. Cantam numa época específica e em uma região específica das montanhas. Um espetáculo sonoro para os ouvidos humanos, mas para eles, uma questão de sobrevivência. “O mundo é sonoro, é ótico”,diz o filósofo Gilles Deleuze. E quando já não escutamos o mundo, é porque o perdemos. Perdemos completamente o mundo. Só os especialistas entendem os sons e as imagens do mundo. O mundo passa despercebido diante dos sentidos da maioria dos humanos. Tamanha tragédia tem a sua origem na formação da consciência, ou seja, “ter consciência” é, ao mesmo tempo, “perder a consciência” de um resto incomensurável. Nossos sentidos se condicionam pela busca das finalidades, queremos o mundo para as nossas fin

Experimentação

Não importa se concordam ou não quando se diz que a vida é experimentação. Pouco importa se os moralistas se revoltam contra a realidade de sermos todos experimentadores. A revolta dos mais sérios indivíduos é sempre contra o inexorável fato de que somos atravessados por experimentações. Você é experimentador e pronto. É perigoso experimentar? É desde o princípio perigoso viver. Mas, ao mesmo tempo, não se dá um passo na vida sem que algum tipo de experimentação tenha que ser iniciada em qualquer nível. Experimentar é ensaio e erro. Mas há os grandes experimentadores e os pequenos. Geralmente, o mundo caminha nas mãos dos grandes. Uma criança é um grande experimentador até o momento em que os adultos interceptam as linhas do mapa experimental das crianças. Para uma criança começar a andar é preciso fazer infinitas tentativas, muitos cálculos de equilíbrio, muitas quedas até a chegada do momento fatal em que ela se põe ereta sobre os pés. O mundo de um indivíduo é justo do tama

Pai

A imagem do pai do século XIX evaparou-se no século XX. Aquele Pai da subjetividade masculina que dava o nome, a fala e o falo aos seus filhos anda vacilante em sua crise de identidade. Não é o fim da família ainda, ela apenas se encontra em desordem, agonizando para se reinventar. Já não cabe mais na realidade social a família típica do modo cristã-judaica e idealista cujo patriarca funcionou como eixo central de produção de subjetividade e sentidos. São famílias reconstituídas, monoparentais, homoparentais e das formas possíveis de rearranjos: famílias de rua, de abrigos, pulveridas de capitalismo e remanescentes de áreas de guerra.   Onde está o pai? Nunca o vimos tão diminuto e inexpressivo, o pai está morto? Kafka, ao ampliar o retrato do pai na extensão do mapa mundi (Carta ao pai), mostra que a função do nome do pai é exercida hoje pelas instituições de poder. Trata-se da autoridade de um pai que foi deslocado para as instâncias burocráticas de poder. O segredo da autorid

Vida

O que é vida? Ou o que é a Vida? Logo nos vem à consciência a vida dos indivíduos, das pessoas; em segundo lugar, quando pensamos, vem a idéia da vida dos animais, das plantas, etc. Mas existe o incomensurável plano da vida pré-individual no qual raramente pensamos. A realidade pura da vida se encontra antes, através e após os indivíduos vivos. Seja uma formiga, um organismo unicelular, um elefante, um vírus, uma bactéria ou um homem. Nem pensamos o fato de que a vida sempre existiu. A vida é eterna, portanto, há um equívoco na espera da eternidade, ela já é desde sempre. Estamos inexoravelmente mergulhados nela, na vida que só pode ser eterna. O que morre é um indivíduo, a vida jamais morre. A filosofia definiu a vida de uma forma extraordinária, “a vida é pré-individual, pré-subjetiva, ontológica, imanência pura...” (GILLES DELEUZE). Dizendo de outra forma, a vida é antes da formação de qualquer ente, ela pré-existe a qualquer formação de subjetividade (mente, pensamento, perce

Corpo

A verdade está no corpo. Esta declaração pode assustar os que acreditam nas idéias acima do corpo. Inventamos muitas crenças e valores sobre o corpo, mas na maioria das vezes, sem ter feito uma consulta prévia ao corpo, que é o único que sabe verdadeiramente o que é bom para si. Em essência, é o corpo que inventa o direito natural. Quando no encontro com outro corpo, ele experimenta alegria, aumentando a sua potência de agir, tal encontro passa a ser de direito do corpo. Não é preciso que nenhuma autoridade científica ou religiosa declare este estado de coisa, o corpo sabe e pronto. Daí, o jovem Espinosa ter dito de forma maravilhosa, o que é bom para o corpo, é sabidamente aquilo que aumenta a sua potência de agir: bons afetos de alegria. Bons encontros. O que é mau para o corpo? Aquilo que o afeta com tristeza, o que diminui a sua potência. Não é uma idéia de bem ou mal no sentido moral, trata-se de um dado real, do que é bom ou ruim para o corpo. É uma fórmula simples, o que com

Rizoma

Pensando a partir da Botânica, um rizoma é um tubérculo, uma raiz que prolifera horizontalmente para qualquer lado, em qualquer direção. Nunca se sabe onde começou, nem onde termina. A grama e o gengibre são formas rizomáticas. A figura que se opõe ao rizoma é a árvore. Ela fixa suas raízes como fundamentos bem estabelecidos. Na história do pensamento, fala-se da “imagem do pensamento” árvore-raiz. É a imagem dogmática do pensamento, uma espécie de juízo que submete o pensamento às raízes dogmáticas que o funda. Tudo deve passar pelo crivo do fundamento árvore-raiz. Muitos sábios foram executados por pensarem além das árvores: Nicolau Copérnico, Geordano Bruno, apenas para lembrar dois exemplos. Nesses casos, trata-se de uma hierarquia do conhecimento, pressuposições de um ponto de partida e de um ponto de chegada. Desta forma, você não poderia estar falando de determinadas coisas se ainda não passou pelos começos. Ao contrário do rizoma, que pode começar em qualquer ponto e se cone

Normalidade

A marca da normalidade é um traço abstrato no horizonte da vida. O que isso significa? Foi preciso muito tempo para que as forças da cultura respaldadas na autoridade dos saberes definissem a linha binária que levou o pensamento a acreditar nas coisas reduzidas em dois: certo-errado, bem-mal, feio-bonito, morto-vivo, homem-mulher, normal-anormal. E o normal, o certo, o justo e o bom etc. são as formatações da linha. Estar em harmonia com a linha ou estar alinhado é o mesmo que estar de bem com a norma abstrata da linha. Quem define os limites da norma? O poder embasado nos saberes: ciência, teologia, moral, direito, política, dentre outros, a família cumprindo o papel do Estado, a religião, a escola, o exército. A Lenda de Procusto ilustra melhor a questão: vem da mitologia grega o mito que se chama “Leito de Procusto”, que diz o seguinte: Procusto era um bandido que vivia em uma floresta e tinha uma cama de tortura. Parecia ser hospitaleiro quando convidava os passantes para se hospe

Liberdade

O homem sempre teve de escolher, entre ter mais liberdade e menos segurança, ou viver menos livre em troca de mais segurança. As duas coisas, ao mesmo tempo, parecem não ser possíveis. Por outras razões, de desejo talvez, o homem lute desesperadamente pela servidão como se fosse pela liberdade (Espinosa, século XVII). Isso porque, a liberdade tem como preço, a solidão. A segurança se consegue através de um pacto entre muitos, ou seja, todos cedem parte de seu desejo para viverem em “segurança”. Mas já foi dito pelos filósofos existencialistas: “o homem está condenado à liberdade”. Mesmo vivendo sob o pacto social, o ser humano é “condenado” a ser livre? De que liberdade estamos falando? Trata-se da existência: o homem nasce sem sentido algum. Como dizem popularmente, o homem nasce nu, careca e desdentado. O sentido é que não há nenhum sentido, nascer é um absurdo. E para viver o homem precisa criar todo o sentido de sua existência, pois, ao nascer, não há sentido algum. Nascemos con

Ego

Vamos pensar na duplicidade inerente a todo ser humano, ou seja, somos um ego e, ao mesmo tempo, outra coisa por trás dele. A questão se encontra bem colocada no drama bíblico, mais precisamente numa carta de São Paulo aos romanos. Ele diz, “aquilo que quero, não faço, mas o que me aborrece, isso faço”. O ego é de uma formação mediada com um outro: o pai, a mãe, os professores e o meio social em geral. Tudo aquilo que nos força a viver no mundo, mas certamente não o é de maneira mais verdadeira, embora pareça ser a mais transparente. Ficaríamos apavorados se víssemos com clareza o quanto o ego é trapaceiro. A questão é que não podemos vê-lo, já que ele é parte de nós mesmos. Ele se encontra tão próximo de nossa personalidade que não podemos percebê-lo: tudo que é muito próximo não é passivo de ser percebido. O ego se esconde onde menos se espera, nas virtudes morais, por exemplo. Pessoas demasiadamente humildes são demasiadamente vaidosas de sua humildade, mas elas não podem ver des

Cativar

 Mas o que é cativar? Perguntou o pequeno príncipe a raposa. Ela disse de um rito: você vem a tal hora, senta aí na relva e me olha assim, com o canto do olho... e amanhã vem no mesmo horário, depois de algum tempo, terá me cativado. Então, quando estiver se aproximando a hora, eu ficarei inquieta... Esta foi, mais ou menos, a estória da raposa e do pequeno principe e de como ele a deixou apaixonada. Depois de algum tempo, ao ouvir o trigo balançando sob o vento, a raposa vai lembrar dos cabelos dourados do pequeno principe, que já não estará mais por perto, então ela sofrerá da ausência, sentirá saudades. Cativar é criar laços afetivos, diria Saint-Exupéry pela boca do pequenino príncipe. Daí em diante, uma rosa, um sopro de vento, um pequeno riacho, um espelho lânguido da água de um lago qualquer, o céu azul ou a noite sob o manto de estrelas, ganha significados novos. Lembranças de afectos anteriormente vividos que retornam perfazendo sempre os mesmos caminhos marcados no compl

Ressentimento

Imagine uma pessoa que não pode esquecer, uma pessoa cuja memória está sempre presente embotando a consciência. Tal pessoa não consegue digerir as lembranças que se presentificam na consciência. A memória é um reservatório de experiências, enquanto que a consciência é “lugar” de encontro de forças ativas/reativas, forças que agem e forças que reagem aos estímulos. São encontros de forças que fazem da consciência um aparelho voltado para fora, para o ambiente vivido. Toda vez que uma força age sobre outra força, essa última reage obrigando o pensamento a pensar. Na verdade, o jogo de forças que se trava na consciência deveria causar uma violência que obrigasse a fazer o pensamento funcionar, mas não é sempre assim que sucede. O pensamento não é natural, pensar exige esforço e abnegação. Vivemos em um tempo onde os pensadores são cada vez mais raros. Pensa-se que pensa e é possível que a grandiosa massa de indivíduos venha a morrer sem nunca pensar. Se a educação prima pela memória, pe

Olhos

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Já foi dito que “os olhos são as janelas da alma”, falando de outra maneira, os olhos têm uma relação de causa e efeito com o sistema-percepção. Isso foi assim revelado na escritura quando se diz: “os olhos são a lâmpada do corpo, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo estará iluminado, se porém os teus olhos forem maus, todo o teu corpo estará em trevas”. Não se trataria apenas de um órgão para ver, mas de uma máquina de leitura do mundo pelos sentidos. Olhamos, vemos e enxergamos com o filtro de nossa subjetividade; assim, colocamos tudo em perspectiva. Ou seja, a percepção se encontra diretamente relacionada com a interioridade das pessoas, só percebemos o que podemos ou o que, de uma certa forma, desejamos perceber. Percebemos um crivo no horizonte, mas não percebemos o horizonte sem o crivo, percebemos uma linha sobre o todo, mas se a linha for subtraída do todo, não restará nada para ser percebido; percebemos a simetria, a segmentarização do espaço extenso, mas ja

Culpa

Todos nós já ouvimos a expressão “errar é humano...”. Só não nos damos conta de que tal sentença - dita por alguém que deseja se reconciliar com a consciência - de nada vale quando percebe que errou ou, como se diz, “pisou na bola” com alguém que não merecia. Neste momento em que escrevo, alguém deve estar magoando, decepcionando, traindo ou ferindo de algum modo o sentimento de um outro. E neste caso, de nada nos vale a ideia de que “errar é humano”. Nos sentimos culpados e não é uma culpa falsa, é real. A culpa falsa tem origem em modos de subjetivação, são formas civilizatórias de interiorizar o sentimento de juízo moral. Tal interiorização, faz-nos sentir como se tivéssemos cometido um pecado que nos arrastasse para o inferno. A civilização faz uma barganha com esse tipo de sentimento, - a sensação de uma dívida impagável. Faz sujeitos submissos e carentes de perdão, depois, vende um balsamo do suposto perdão. Se funcionasse, bastaria um único suplício. Mas como é abstr

Gatos

Não há nada para entender nos gatos, não há nada a ser interpretado neles, os gatos são tipos ideais que, ao lado dos animais selvagens, são os verdadeiros aristocratas domésticos, têm um estilo próprio de viver. Os gatos parecem fingir uma domesticação que não lhes é própria: deitam nos lugares mais confortáveis da casa, aceitam os afagos de seus “donos”, são absolutamente higiênicos. Dizem que os gatos não se deixam escolher, são eles que sempre escolhem. Também parece ser verdade quanto ao amor, gatos não amam seus donos, amam a casa que lhe proporcionam conforto. Como aristocratas que são, eles se autodeterminam: se alongam após longos cochilos, não comem qualquer coisa, escolhem quem poderá lhes tocar, se ausentam à noite sem pedir permissão e voltam quando desejam. Gatos não se assujeitam nunca. Eles transitam sempre nos espaços entre as coisas, daí não serem inteiramente segmentarizados como os cachorros, exceto os vira-latas que desenvolvem a capacidade de sobreviver na

Não/Sim

Em alguns momentos deveríamos pensar o “sim” como uma negação e o “não” como uma afirmação. Quantas vezes se diz “sim”, quando se desejava dizer “não”? Dizemos “sim” muitas vezes por medo de rejeição, medo de solidão, o que compromete qualquer possibilidade de ser livre. Nesses casos, o “sim”, é quase sempre uma negação de possibilidades que tem como cerne múltiplas formas de submissão. Alguns indivíduos podem dizer “sim” a uma droga, apenas para se sentirem fazendo parte de uma tribo. Assim como outros, por culpa e medo, podem dizer o mesmo “sim” a uma fé religiosa que os infantilizam e os reprimem. Pessoas vivem infelizes e dizendo “sim” a relações amorosas que os subestimam e os empobrecem por toda uma vida, apenas para não suportarem o fardo da solidão. Quantas mulheres e homens, neste exato momento, têm sentido o peso de uma má escolha que os têm enfraquecido vida a fora: seja em um trabalho ruim, em um casamento desastroso, em um amor infeliz, em um sexo egoísta que humilha

Ciúme

A psicanálise lacaniana desenvolve uma máxima interessante sobre o desejo do outro, que é o meu desejo. Estou dizendo isso a minha maneira, é claro. Desejamos que o outro, indubitavelmente, nos dirija o seu próprio desejo. Dizendo de outra forma, desejamos que o desejo do outro seja único e exclusivamente para nós mesmos. Já não se trata de uma pessoa em carne e osso, mas sim do que abstraímos dela, ou seja, do desejo que pode e deve nos direcionar. Eis todo o sentido do sentimento que nos apossa e nos oprime, o sentimento de ciúme. Sentimos ciúme de uma pessoa que não pode garantir o tempo todo a entrega incondicional de seu desejo. O trágico nessa questão é que o desejo é fluido, volátil e se desfaz em fluxos contínuos. Ninguém, nem o desejante, nem o desejado, pode capturar o desejo do outro por um tempo indefinido. Ainda que não se fale sobre a perda do desejo, ela se faz presente de maneira tácita na vida das pessoas. Dessa (des)razão, fundamentamos nossos ciúmes, de amigos,

Relacionamento

O adorável clássico do cinema   Bagdad café   mostra, de maneira extraordinária, o que pode significar o termo relacionamento. Isso acontece no meio do nada na Rota 66 no Arizona, em um minúsculo bar, um posto de gasolina e um motel, onde os relacionamentos são marcados pelas diferenças e singularidades de cada frequentador. O   Bagdad café   mostra poeticamente, a arte de   re-laçar , verdadeiro sentido da palavra relacionamento. Quando falamos em relacionamentos, temos por hábito, nos remetermos ao casamento ou ao casal classicamente definidos (homem/mulher). Prova que nos encontramos presos em nós cegos enferrujados. Existe uma multiplicidade de maneiras de se (con)viver ou de se (con)jugar. Conjugar e relacionar, são sistemas abertos, pressupõem movimentos contínuos. Falou-se bem e mal do casamento, só não se falou o suficiente da conjugalidade que pode fazer qualquer relacionamento durar. Pessoas, famílias, amigos, amantes (no sentido mais nobre), sócios, vizinhança, etc., pod

Amor

Platão diz pela boca de Sócrates, pelo lado humano, que o amor é por natureza pedinte, faltoso, mendigo. Por outro lado, o amor tem características divinas: o amor é expediente, sagaz, é preenchimento e exuberância. O amor é justo assim, quando os amantes estão apaixonados é como se se encontrassem (entheos) cheios de deuses, seria como se de nada tivessem falta. Quando cheios de amor (eros), os amantes não se dão conta da ressaca vindoura, muitas vezes, ela bate à porta antes do previsto. É que o nome desse amor, como todos os nomes, é uma representação arbitrária de um efeito de preenchimento químico. A emoção do amor resulta da afecção química da  fenilatilamina . Ela tem duração curta, dura o seu próprio tempo podendo terminar subitamente. Tanto o sentimento amoroso quanto a química que o causa são fenomenos dissimétricos: um dos amantes há de ficar na mais profunda penúria, pobreza, pedinte, como diria Platão. Quando o amor é falta e penúria é porque o amado não tem o objeto d

Desejo

O desejo funciona como o fundo de nossa alma e, portanto, determina a nossa visão de mundo, somos determinados pelo desejo. Uma pessoa que se apaixona, tende a aproximar os fatos, de tal modo que os mesmos se ajustem ao seu desejo de conquista. A própria percepção das coisas e das pessoas pode sofrer distorções em favor do desejante. O indivíduo religioso, por exemplo, tende a manipular os dados "inventando" sinais de deus que, segundo o desejante, está sempre a favor de sua realização. “deus me mostrou” “é a vontade de deus”. São as frases mais ouvidas. Isso pode ser verdadeiro, desde o exemplo dado, até aos níveis políticos de maiores conseqüências. Nos dias atuais, ficou comum justificar as guerras a uma suposta vontade dos deuses, na verdade é uma volta ao passado, onde também a violência das guerras tinha, na visão dos homens, a aprovação, a benção ou a reprovação de deus. O homem deseja, mas não é adulto suficientemente para assumir sozinho o seu desejo com as su

Perdas

A vida, tal qual a concebemos, tem como único fundamento inexorável o perder em todos os sentidos. Perder é morrer em sucessivas prestações. Edgar Allan Poe diz isso de uma forma assustadora pela voz do corvo:"nunca mais!", diria ele, em tantas circunstâncias "nunca mais!" Nunca mais a nossa infância, nunca mais a juventude, nunca mais esse tempo que passou, nunca mais a primeira paixão, nunca mais os dias passados... tudo que passou é eternamente perdido. Neste momento, ainda que não queiramos pensar no fato, estamos perdendo tantas coisas que escorregam como areia por entre os dedos. Isso porque, tudo na vida se degrada sob o fluir do tempo. Neste caso, todas as perdas são necessárias e inevitáveis. E viver é o constante aprender a perder e perder-se, encontrando-se na graça do viver, em fluxos contínuos do movimento dos devires da vida.

Escolhas

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Não costumamos pensar no fato de que ao escolhermos estar em um lugar, ao mesmo tempo, não estaremos em tantos outros. Isso porque não podemos estar em dois lugares no mesmo instante. Perdemos sempre quando escolhemos, sem ter a certeza de que a escolha que assumimos seja a melhor. A princípio, nenhuma escolha é boa. Por isso, viver é um lance de dados. E o bom jogador é o que lança o dado sem desejar o controle do resultado do jogo. Apenas lançamos o dado e assumimos o jogo sem lamentar o resultado. A vida é para ser afirmada, tal qual ela se apresenta. Em cada lance uma infinidade de possibilidades se abre, mas também infinitas outras se fecham. Se a vida pode ser comparada a lances de dados, então, há de se saber, de início, que o dado tem seis lados, mas é apenas um dos lados que se faz resultado ao ser lançado. Perdemos cinco possibilidades para recebermos, ao acaso, uma única para ser afirmada. O sentido da vida não nos é dado. É preciso produzir sentido para continuar vi