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Mostrando postagens de maio, 2013

Embriaguez - conclusão

Castañeda admite o tema dos “dois mundos”, mas não é o caso de interpretar o olhar do antropólogo e tomá-lo literalmente. Os dois mundos, de que lhe fala o feiticeiro, são duas realidades do mesmo mundo, como já dissera. “A coisa especial a se aprender é como chegar à fresta entre os mundos e como entrar no outro mundo. Não se trata do mundo dos corpos, mas de estados de acontecimentos, quando os estados de coisas ou misturas dos corpos, dos “acontecimentos incorporais na superfície, que resultam dessas misturas”, [1] operam uma cisão totalmente nova da relação causal. O feiticeiro introduz Castañeda na experimentação estóica, na inversão do tempo e da linguagem calcados em limites fixos. Eles fazem da droga um meio de ultrapassar esses limites estruturais, “e os restituem à equivalência infinita de um devir ilimitado (...) o devir-ilimitado é o próprio acontecimento”. [2] O acontecimento é “coextensivo ao devir, e este, por sua vez, é coextensivo à linguagem”. A linguagem correspo

Embriaguez III

Don Juan afirmava que, para ver, era preciso necessariamente deter o mundo. Deter o mundo exprime perfeitamente determinados estados de consciência durante os quais a realidade da vida cotidiana é modificada, isso porque o fluxo das interpretações, normalmente contínuo, é interrompido por um conjunto de circunstâncias estranhas a esse fluxo. [1] A consciência livre, “cuja natureza é ser consciência de alguma coisa, mas que por isso mesmo constitui-se ela própria diante do real e a cada instante o ultrapassa”, nessa capacidade de ultrapassar o real, não se reduz à consciência do cogito, mas é nele que se revela enquanto “estiver-no-mundo”, ou seja, vivendo sua relação com o real como situação. [2] Na experiência indígena, a relação se estabelece na duplicidade tonal/nagual. O mundo dos homens é o tonal, mas o mundo dos demônios é o nagual. A finalidade da experimentação é levar a consciência à sua própria desmensura. É o elemento anômalo de que tratam Deleuze/Guattari no platô de

Embriaguez II

Despedimo-nos da psicanálise no momento em que essa fica presa à produção de fantasmas para a realização do desejo. Ou seja, logo que haja uma nova excitação, produzir-se-á, graças à ligação que foi estabelecida na primeira experiência de satisfação, uma moção psíquica que procurará reinvestir a imagem mnésica dessa percepção (e até mesmo invocá-la), isto é, estabelecer a situação da primeira satisfação: a essa moção, a psicanálise vai chamar desejo; o reaparecimento da percepção é a “realização do desejo”. A procura do objeto no real é inteiramente orientada por essa relação com os sinais. É a articulação desses sinais que constitui aquele correlativo do desejo que é a fantasia. A dependência nasceria desse complexo sistema: marcas mnêmicas que produzem a ilusão de um objeto perdido, dependência física em relação à química, incapacidade do usuário em lidar com suas questões existenciais etc. O experimentador em Castañeda não está em busca dos fantasmas, não é esse o propósito d

Embriaguez como máquina de guerra

Em um pequeno texto intitulado “Duas questões”, Deleuze traz a ideia de um agenciamento de conjunto-droga. Pensar a droga é tratar um território com duas correlações, de exterior e de interior. No caso relacionado com o interior, leva-se em consideração o que as “diversas espécies de drogas” podem causar no sistema-percepção; por outro lado, existem as questões médicas do uso e suas consequências externas: dependência, crises de abstinência, paranóias, violência doméstica etc.             Em “Duas questões”, Deleuze ressalta em primeiro lugar a dessexualização da droga fruto do investimento direto no desejo-percepção, contrariando a posição psicanalítica da reminiscência: alguns interpretam como uma mudança na hierarquia de valores dos usuários; outros, com uma perspetiva mais psicanalítica, vêem como um deslocamento do gozo sexual para um gozo farmacológico. Deleuze procurou estabelecer uma ligação entre uma dimensão micro e macro da análise para compreender as causalidades

Mola emolecular - conclusão

Toda a fabricação do inconsciente não garante que ele deixe de ser ao mesmo tempo, molar/molecular. É necessário admitir o estatuto maquínico do inconsciente numa subjetividade que se encontra em profusão de agenciamentos de dupla face. Pode parecer contraditório falarmos de sujeito nessa altura quando já tratamos da questão anteriormente. Reiteramos que há um sujeito, mas que tipo de sujeito? É sempre um sujeito escorregadio. Na correlação de forças heterogêneas, surge um sujeito passageiro, sempre fruto de correlações. Sujeito relacionado e conectado pela conjunção “e”, “e”, “e”, depois”. Trata-se da correção micro e macro que não é a relação de maior e menor, pois “o molecular, como processo, pode nascer do macro. O molar pode se instaurar no micro”. [1] Os dois movimentos imanentes a um mesmo sentido. Não se pode pensar que um transcendente se instaure sem que as forças vitais não o desarrume e contrarie a sua lógica. É a coerência do pensamento deleuziano, pensar nisso como a

Molar e molecular IV

Voltemos à questão do cruzamento molar/molecular de Félix Guattari. Guattari diz que a “matéria é corpuscular e ondulatória, ao mesmo tempo” [1] ( [2] ). É  a tese do Anti-Édipo , algo da ordem molecular (desejo) se passa no meio das estruturas políticas que pertencem às formações molares, mas não só nesse caso, o desejo escorre por entre as coisas. Enquanto fluxo que escorre e é interceptado por um órgãos, se encontra em nível molecular, sensações subcorticais? Não só as lutas sociais, mas as lutas individuais são, ao mesmo tempo molar e molecular. As lutas esquizofrênicas e os delírios paranoicos não são menos molares do que moleculares.  Os milhares de orifícios na pele de Schereber, são a mistura desses graus de intensidades, de linhas de um antigo mapa que cruzam com linhas lisas de sensações puras. A linguagem e as formas não são suficientes para dar conta desse real molecular. O delírio surge como expressão, uma política de vida.  Como não perceber o delírio como express

Molar e molecular III

A realidade é, no entanto, outra, não existe tal diferença entre “produção”, “distribuição” e “consumo”, já que a própria “produção” é, ao mesmo tempo, “registro” (distribuição) e “consumo”, não há esferas separadas, mas sim diversos níveis de um mesmo processo produtivo: “De sorte que tudo é produção: produções de produções, de ações e de paixões: produções de registros, de distribuições e de anotações; produções de consumos, de voluptuosidades e de dores” [1] . Homem e natureza se acoplam numa dobra que permite ao corpo receber sensações puras da natureza.  O paradoxo dos cones que funciona como misturador. Uma máquina fonte acoplada a uma máquina órgão sem metáfora. Um lugar no cérebro ou no corpo inteiro, já que o cérebro está em cada milimetro da pele. Um lugar esquizofrênico no homem, seja no sistema subcortical, seja no inconsciente que se liga a essa parte do organismo.  O universo entra no indivíduo por uma porta aberta ao infinito fazendo do desejo um fluxo que transbo

Molar e molecular II

Em nível social podemos encontrar o mesmo processo agindo no seio das classes sociais. Não é o caso da “traição” dos ideias da classe trabalhadora? Um devir molecular sombrio pode ocorrer a qualquer momento. É que a “massa” ou “multidão” pode irromper no meio da classe trabalhadora que se identifica mais com o “povo”.  Mas uma classe ou um povo pode se transformar ou deixar nascer em seu interior uma multidão molecular. Mesmo quando Canetti define o termo massa, ao longo dos exemplos, até chegar ao fogo ou ao mar, é de uma potência que está falando. A força que se acha no meio da massa é da ordem molecular. Mas as classes são talhadas na massa, no molar e no molecular. É sempre uma organização de forças.  Tais organizações não impedem que entre os estratos, corram livres, elementos moleculares que vão atrapalhar a máquina social e burocrática. As microprocessualidades que escorrem por entre as coisas, são as máquinas desejantes que desarranjam qualquer estrutura macro.  S

Molar e molecular – passagem do misticismo à filosofia

A totalidade do ser é, pois, atravessada “pelas duas segmentaridades e ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular” . [1] Tomamos o nagual em comparação ao plano liso de segmentaridade molecular. Semelhante ao  desterritorializado. E o tonal, como o território territorializado [2] que passa por desterritorialização e reterritorialização o tempo todo: máquinas desejantes e máquinas técnicas e sociais se alternando sem interrupção. O tonal em todos nós. Mas a totalidade do ser inclui o nagual que está logo ali. Somos uma ilha em meio a eternidade do nagual . O poder paira sobre a ilha tonal. “No momento do nascimento, e durante algum tempo depois, somos todos nagual ”. A multiplicidade é de dois níveis, qualitativa e estatística. “Mas são inseparáveis [...] porque coexistem, passam uma para a outra, seguindo diferentes figuras como nos primitivos ou em nós”. [3] Percebemos figuras de conjunto dentro das limitações de nosso tonal pessoal. Andamos de tal maneira dentro de nos