Máquina de guerra da infância III
O pequeno Hans tenta, constrói um rizoma com a casa de sua família, com
o prédio, a rua, e a obstrução dessas linhas (interferência danosa do pai e de
Freud) só poderia ser combatida no “devir-animal” do menino, que aparece na
forma de sintomas fóbicos. O desejo real de uma criança de fazer agenciamentos
com outros, por inferência do analista, torna-se um segredo sujo. É
“necessário” que esse desejo de ocupar espaços na rua esconda outra coisa.
“Freud não entende nada de agenciamentos, nem de movimentos de
desterritorialização que os acompanham (...). Ele só conhece o território
familiar.”[1]
Quando se admite na psicanálise a existência de outro agenciamento, é para ser
representativo da família. Todas as amantes desejadas são espécies de avatares
do desejo pela mãe.
Por isso, o Anti-Édipo é voltado contra essa figura, que
pretende atingir a totalidade e cujo desejo secreto permanece dirigido ao que
há de mais íntimo na família, a mãe, cuja satisfação do desejo é condenada ao
trágico fracasso, da culpa e do castigo. Contra o aparelho edipiano de repressão
e regressão, os movimentos recursivos que formam a máquina desejante operam por
agenciamentos e rizomas. Tal máquina é definível através de sua capacidade de estabelecer
conexões infinitas, que se estendem por todos os lados, em todas as direções.
Sobre o medo da castração, Deleuze/Guattari consideram que Hans jamais
manifestou medo algum de que lhe cortassem o pênis; quanto a isso, o menino
respondeu com indiferença. As crianças não se interessam pelo órgão genital com
suas funções sexuais, mas sim por seu funcionamento, que foi o caso de Hans.
Ele faz do “pipi” um agente coletivo de enunciação, o “fazer-pipi” estendido
aos demais membros da família e da comunidade humana e animal. “Evidentemente,
as meninas têm um faz-pipi e as mamães também, pois elas fazem pipi: existem
sempre os mesmos materiais, mas simplesmente em posições e conexões variáveis.”[2]
A teoria em questão vai relacionar a identidade de materiais
(fazer-pipi, a irmãzinha, a mãe, a meninas da vizinhança, o sexo etc.) a seu
plano de referência: plano de imanência, de consistência ou de composição. Essas
variações de posição e conexão com as multiplicidades dependem dos
agenciamentos que a teoria estabelece. A máquina interpretativa se vê atrelada
ao sistema-raiz de Édipo e à sua constelação, desprezando o fato de que os
indivíduos se encontram em múltiplos agenciamentos, “(...) microcontágio
‘político’, em vez de uma macrofiliação ‘privada’”.[3]
A psicanálise brotou do solo da psiquiatria: ambas pretendem ascender
ao estatuto da ciência que se vê subsumida nas raízes da representação.[4]
Assim, a psiquiatria e a psicanálise se viram em dificuldades para entender os
delírios sem déficit cognitivo, a esquizofrenia como processo essencial da vida
que escapa aos ditames de suas teorias, de uma interioridade mental, pois se
trata de algo fora de qualquer psiquismo.
(...) ele é como o de fora de onde vem
todo desejo (...). Já é assim na criança, que maquina seu desejo como o de
fora, com a conquista do de fora, não em seus estágios interiores, nem sob estruturas
transcendentes. Mais uma vez o pequeno Hans: há a rua, o cavalo, o ônibus, os
pais, o professor Freud em pessoa, o ‘faz-pipi’ que não é nem um órgão nem uma
função, mas um funcionamento maquínico, uma peça da máquina.[5]
A psicanálise parece ir bem até o momento em que esbarra com as
velocidades de leis próprias. Como uma teoria, presa como está em seus próprios
limites, poderia interpretar “brumas, pestes, vazios, saltos, imobilizações,
suspenses, precipitações”.[6]
Para Deleuze, o erro começa pela escolha errada do plano. O plano
submete a teoria: desde o começo, não é a teoria que determina o plano. Um
plano de organização já teórico em seus fundamentos. “Pois o fracasso faz parte
do próprio plano: é preciso, com efeito, sempre retomar pelo meio, para dar aos
elementos novas relações de velocidade e de lentidão que o fazem mudar de
agenciamento, saltar de um agenciamento para outro”.[7]
[1] DELEUZE, G., op. cit. p. 81.
[2] Idem, p. 82.
[3] DELEUZE, G. e PARNET, C., Dialogues, p. 102.
[4] Desde Aristóteles, o mundo ocidental tem seguido os princípios
lógicos da filosofia que se entendem por “representação” ou clássicos”. Essa
lógica se baseia na lei da identidade, que afirma que A é A; na lei da contradição (A não é
não-A) e na lei do meio excluído (A não pode ser A e não-A, nem A
não-A). Aristóteles explica sua posição muito claramente na seguinte sentença:
“É impossível para a mesma coisa ao mesmo tempo pertencer e não pertencer à
mesma coisa e ao mesmo respeito; e quaisquer outras distinções que possamos
acrescentar para enfrentar objeções dialéticas devem ser acrescentadas. Este,
pois, é o mais certo de todos os princípios...” (Aristóteles, Metafísica).
[5] DELEUZE, G. e PARNET,
C., Dialogues, p. 114.
[6] Idem, p. 113.
[7] Idem, ibidem.
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