Embriaguez como máquina de guerra




Em um pequeno texto intitulado “Duas questões”, Deleuze traz a ideia de um agenciamento de conjunto-droga. Pensar a droga é tratar um território com duas correlações, de exterior e de interior. No caso relacionado com o interior, leva-se em consideração o que as “diversas espécies de drogas” podem causar no sistema-percepção; por outro lado, existem as questões médicas do uso e suas consequências externas: dependência, crises de abstinência, paranóias, violência doméstica etc.
            Em “Duas questões”, Deleuze ressalta em primeiro lugar a dessexualização da droga fruto do investimento direto no desejo-percepção, contrariando a posição psicanalítica da reminiscência: alguns interpretam como uma mudança na hierarquia de valores dos usuários; outros, com uma perspetiva mais psicanalítica, vêem como um deslocamento do gozo sexual para um gozo farmacológico.
Deleuze procurou estabelecer uma ligação entre uma dimensão micro e macro da análise para compreender as causalidades interiores e exteriores do uso e abuso de drogas. Sugere que as diferenças entre as substâncias são secundárias e dizem respeito a velocidades. A noção de tempo e espaço ajuda a estabelecer uma relação entre a vivência do tempo no cotidiano e o efeito das drogas. A escolha das drogas tem relação maior com as velocidades e os graus em relação ao cotidiano: a escolha das drogas, dos modos de preparar para o uso, do ritual e da construção dos efeitos, das viagens e dos relatos.
Delinear um território conjunto-droga facilitará a compreensão das motivações internas e externas ao consumo, além de estabelecer uma relação entre vivência do tempo, território e o significado sociocultural de usar drogas em determinadas redes de amizades, classes, grupos de status e distintas relações de gênero.[1]
 As pesquisas antropológicas procuram separar os diversos tipos de drogas visando à identificação de seu uso. Qual é o sentido da busca de seus usuários? Carlos Castañeda parece ter ido mais longe nessa pesquisa. O guerreiro indígena procura “tocar a eternidade que o cerca” e atingir a “totalidade do ser”. Diz ele: “Sabe que neste momento você está cercado pela eternidade? E sabe que pode usar essa eternidade, se assim o desejar?”[2]
A psicanálise, segundo o pequeno texto de Deleuze, aborda, nesse caso da droga, a questão do desejo. A psicanálise mostra que “o desejo investe um sistema de traços mnésicos e de afetos”, que abre condições de possibilidades para a fuga da consciência e a produção de novas sensibilidades. Falando a partir da psicanálise, quando da primeira experiência de satisfação, essa deixa um traço mnésico no psiquismo. E, mais tarde, quando o estado de tensão pulsional reaparecer, esse traço mnésico será reativado; e a imagem/percepção de um objeto será reinvestida. Essa “primeira experiência” não precisa ter existido; é a forma de funcionamento de um constructo a partir do qual podemos elaborar uma reflexão teórica. Não precisa ter havido um objeto que se perdeu. O desejo não depende de tal objeto para se movimentar; só se relaciona com um sujeito subjetivo, que é dele mesmo que o experimentador quer evadir-se, para que o desejo possa fluir livremente, sem objeto algum.


[1] DELEUZE, G. “Duas questões”. Revista Saúde Loucura,  n. 3, São Paulo: Hucitec, p. 64.
[2] CASTAÑEDA, C., op. cit., p. 16.

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