Experimentação com drogas III
Os experimentadores, cada qual com sua
droga (Virginia Wolf, Gilles Deleuze, William Burroughs, Aldous Huxley, o casal
Fitzgerald, Thomas De Quincey etc.), Castañeda e Artaud, corriam em busca de um
uso do corpo há muito reprimido pelos sistemas de controle. O exemplo que se
aproxima do que pretendemos dizer vem de Artaud, requisitando maior liberdade
de ação sobre o próprio corpo sem órgãos, já que o organismo ter-se-ia
transformado em camisa de força, diz Artaud: “Podem me prender numa camisa de
força, mas não há nada mais inútil do que um órgão!”[1]
Um imenso abismo desejante toma conta da geografia interior de Artaud. “Assim
como o mundo tem uma geografia, também o homem interior tem sua geografia, e
esta é uma coisa material.”[2]
Protocolo minucioso, encontrar um “lugar
de poder”, aprender a ficar em silêncio por longos momentos para aprender a
“sonhar”. As “injeções de prudência” são necessárias nesse jogo de
experimentações: “Ele me avisara de que o primeiro estágio da faceta
preparatória, que ele chamava de ‘iniciar o sonho’, consistia em um jogo mortal
que nossa mente disputava consigo”.[3]
São sonhos sem sono ao modo kafkaniano. É
preciso estar de olhos bem abertos para trabalhar os sonhos. Longe das
conotações psicanalíticas e/ou apocalípticas, em que os sonhos são de sentido
interpretativo, os sonhos em sono lançam o sonhador à falta de sentido, à “melancolia
ou até mesmo a uma depressão suicida”.[4]
À sua maneira, Castañeda busca um corpo
sem órgãos. São as mesmas subidas e descidas perigosas[5] para
produzir para si um corpo sem órgãos. “Não é tranquilizador, porque você pode
falhar. Ou às vezes pode ser aterrorizante, conduzi-lo à morte.”
As doses de prudência não têm relação com
o medo; o medo espanta os devires sensíveis. Tanto Deleuze/Guattari quanto
Castañeda falam de “agitação molecular”, espaços-entre que racham o Eu
identitário, portanto alteração de estados de consciência. “Argumentou que eu
não deveria perturbar o local de poder com sentimentos desnecessários de medo
ou de excitação.”[6]
É uma questão de embriaguez. Longe das infrutíferas discussões morais, a
embriaguez tem um sentido mais próximo do estado de beatitude espinosista. É
estar tomado pela vida profunda, onde o Eu vacila para dar lugar ao “sonho”
ilimitado: desertos, terras estranhas nunca antes visitadas. Sonhos “muito além
do normal, em matéria de nitidez”.[7]
É que não se chega ao corpo sem órgãos com
a totalidade de Eu; tal experiência é afastada com os ruídos do Eu. Ele (Eu)
quer conservar tudo o que tem: o desejo pelos objetos e fantasmas, por exemplo.
Por outro lado, a prática da criação de um corpo sem órgãos é uma experiência
de desejo sem produção de fantasmas de objetos perdidos que se relacionam com a
reminiscência de Eu que é um organismo povoado de identidades fixas. O corpo
sem órgãos é povoado de intensidades semoventes, devires portanto.
[1] ARTAUD, Atonin. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: Ed. L&PM, 1983; Mille Plateaux, p. 185; e ARTAUD, Antonin. “Para acabar com o julgamento de Deus”.
In: WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin
Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983, v. 5, p. 93. [Coleção Rebeldes &
Malditos]
[3] CASTAÑEDA, C. Porta para o infinito. Rio de Janeiro:
Nova Era, 1998, p. 18.
[4] Idem, ibidem.
[5] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, pp. 185-204.
[6] CASTAÑEDA, C. Portal para o infinito. Rio de
Janeiro: Nova Era, 1998, pp. 18-19.
[7] Idem, ibidem.
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