Criança máquina desejante II
Tal lugar só é útil nesse sentido; como ponto de partida, ele é para
ser abandonado em função dos “trajetos essenciais para a atividade psíquica”. Essa
atividade política não depende tanto de deslocamentos espaciais; depende menos
do que de meios. Os deslocamentos são funções, sujeito e objeto, eles acontecem
de uma identidade a outra.
A segmentaridade compõe uma longa linha de deslocamentos, de um espaço
a outro, da casa à escola, da casa à igreja para o culto etc.[1]
Nesse caso da segmentaridade, os espaços existem como funções primeiras, são
fixos, os pais estão em primeiro lugar – são eles que definem como sentar, como
dizer no momento em estiver autorizado, independentemente dos meios em se
situam. Mas as crianças querem ocupar o meio entre as coisas, e as coisas só
são importantes porque também servem como meio no meio. É o mesmo que Deleuze
diz sobre a arte, a pintura ou a escultura. A arte é, antes de tudo, a arte de
cartografar.
(...) Ela ordena caminhos, ela mesma é uma
viagem. Uma escultura segue os caminhos que lhe dão um fora, só opera com
curvas não fechadas que dividem e atravessam o corpo orgânico, só tem a memória
do material (...). Carmen Perrin limpa blocos erráticos de verdor que os
integra à submata, devolve-os à memória da geladeira que os trouxe até aqui,
não para assinar-lhes a origem, mas para fazer seu deslocamento algo visível.[2]
A arte da guerra também passa por domínios da cartografia.
Em O Covil, Kafka
distribui víveres por todos os caminhos e bifurcações dos túneis, mas é tudo
uma estratégia de meios para facilitar a fuga. Nunca se sabe quando ou por onde
o inimigo vai atacar. O meio é composto de qualidades, substâncias, potências e
acontecimentos fundamentais. No caso Hans, a rua e suas matérias, como a
calçada, os ruídos dos comerciantes, os animais, como os cavalos atrelados e
seus dramas (escorregar, cair, ser chicoteado).
O trajeto se confunde não apenas com a
subjetividade daqueles que percorrem um meio enquanto ele se reflete naqueles
que o percorrem. O mapa exprime a identidade do percurso e do percorrido. Ele
se confunde com seu objeto quando o próprio objeto é movimento.[3]
Os pais são um meio, a rua é um meio; um meio é aquilo que a criança
percorre e no qual traça um mapa aberto à entrada de outros meios. Objetos e
parentes são coordenadas de tudo aquilo que é investido pelo inconsciente. As
crianças estão sempre mergulhadas no meio que percorrem. Ilusão dos pais pensar
que são a figura mais importante; eles são também meios entre meios, são
facilitadores de aberturas e fechamentos de novos meios. O mundo não deriva dos
pais, os quais são apenas meios de entrada no mundo: posição cartográfica de
Deleuze/Guattari, em oposição à posição arqueológica da psicanálise.
[1] Deleuze e Guattari tomam a análise de Foucault – por ele denominada
de microfísica do poder e que se
encontra em Vigiar e punir. O poder
também tem suas formas de miniaturizar e entrar em imitações moleculares,
exercido em detalhes espalhados por espaços “abertos” ou fechados, para exercitar
neles a disciplina. Igualmente ocorre na escola, no exército, na prisão etc.
(FOUCAULT, M., Vigiar e punir, pp.
140-207).
[2] DELEUZE, G., Critique et clinique, p. 87.
[3] DELEUZE, G. Critique
et clinique. Paris: Les Editions Minuit, 1993, p. 81 (Tr. Peter Pál Pelbart, p. 73).
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