Devires na literatura V


Ao constatar o homem como “coisa” entre coisas segmentadas por todos os lados e descrevendo-o como animal, Kafka afirma o desejo como o elemento que precipita a produção de sentido, mas que, sob o olhar apressado, não teria sentido algum. Se esse estado de coisificação resulta da ação do desejo fascista, por outro lado, o investimento do desejo revolucionário se revela na arte de dizer essas coisas a ponto de provocar risos. Ou seja, fazer literatura e produção desejante são efeitos de um agenciamento maquínico.
São três categorias solidárias: desejo, literatura e política. O desejo é encarnado na literatura de Kafka e, por ser revolucionário, a tarefa é encontrar tal revolução, qual é a sua máquina de guerra? A máquina de Kafka é o seu método. Ou seja, seu método consiste em descrever friamente sua constatação. Como diz Anders: “Kafka desloca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal.”[1] O humor e o realismo representam um método, uma máquina de guerra. Kafka está nos dizendo que, diante do intolerável que não se pode enfrentar, já que ele está também dentro de nós mesmos, ainda resta alguma coisa que o poder não consegue controlar. Tal procedimento que o poder ainda não conseguiu controlar é a possibilidade de falar de si mesmo, como ele é, sem precisar acrescentar nada mais além de uma saborosa dose de ironia e humor.
Sobre a autoridade paterna que se expande ao nível do mapa-múndi, embora se possa falar de edipianização ao extremo, é o realismo crítico carregado de humor que está em questão. Não se trata de um sonho inconsciente; Kafka sonha acordado. Se tiver de se falar de sonho em Kafka, é preciso levar em conta que são sonhos sem sonos, sonhos de uma extrema nitidez que o impedem de dormir.
Portanto, não se trata do mesmo conteúdo de edipianização ampliada, que Deleuze/Guattari denunciam nas estruturas sociais no Anti-Édipo. Kafka segue outra linha, ele não enfrenta, mas afronta: ampliar a autoridade paterna ao extremo do mundo para que ela mesma se confunda em seu seio de contradições. Temos, assim, as peças das máquinas desejantes que se articulam juntamente com as máquinas burocráticas das repartições, da justiça e da autoridade paterna que se burocratiza.
Como demonstra Guattari, assim como as máquinas tecnológicas são consideradas dentro de um phylum maquínico, as máquinas burocráticas também têm máquinas que as precedem e outras que as sucedem. “Elas seguem por gerações – como as gerações de automóveis –, cada qual abrindo a virtualidade de outras máquinas que virão. Elas incitam, por este ou aquele elemento, uma junção com todas as filiações maquínicas do futuro”.[2]
Há sempre um phylum maquínico ligando as máquinas em suas extremidades. O que Kafka consegue mostrar passa pelo real emperramento das máquinas sociais. Uma contradição estranha arrasta a megamáquina burocrática. A revolucionária operação esquizodesejante se encontra desarranjando a máquina social e burocrática.


[1] ANDERS, G., op. cit., p. 15.
[2] GUATTARI, F. “A paixão das máquinas”. In: O Reencantamento do Concreto, Cadernos de Subjetividade. São Paulo: Editora HUCITEC, EDUC, 2003, p. 42.

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