Pequeno Hans IV
Enquanto houver a prevalência de uma máquina de guerra, haverá a
possibilidade de novos agenciamentos. São novas grades intensivas que se cruzam
no entrelaçamento dos objetos que se agregam, tanto no animal quanto no homem.
O aparelho de Estado no interior da família pode barrar essa operação de
guerra. O Estado sempre se refugiou na família; ele dá em troca o “bem-estar
social” e a segurança. Mas é a “família unida” que mais garante a perpetuidade
do Estado. A família é o primeiro Estado com que depara a existência dos indivíduos.
Podemos estabelecer essa correlação de cima para baixo ou ao contrário: o
Estado determina as relações de família, ou o conjunto de todas as famílias
determinam as relações de Estado.
Édipo percorre um longo caminho de
estruturação. De fato, com o sentimento infantil do nome de uma criança, os
pais introduzem as exigências da identidade civil a que nos submetemos com
naturalidade. Antes mesmo de as crianças aprenderem a falar, ensinam a ela seu
nome, o nome de seus pais e sua idade. Seria terrível a criança chegar à escola
e não saber seu nome, sua idade e o nome da família. Tudo que é feito com
naturalidade não é pensado em toda a extensão. Assim como Édipo, que passou a
ser pensado como dado, mas não é. Édipo é uma fantástica maquinação política.
Na Idade Média, o primeiro nome tinha uma
designação imprecisa; mais tarde, foi necessário completá-lo por um sobrenome
de família, precisamente o nome do pai. O primeiro nome pertence ao mundo da
fantasia, enquanto o sobrenome pertence ao mundo da tradição, ao nome do pai.
As pesquisas de Philippe Ariès mostram que “foi somente no século XVIII que os
párocos passaram a manter seus registros com a exatidão ou a consistência que
um Estado moderno exige de seus funcionários de registro civil”.[1] No plano da
fabricação de um sujeito, tudo começa com a fabricação do inconsciente. Tornar
os objetos parciais do funcionamento do inconsciente maquínico em objetos
totais da personalidade: um nome com sobrenome, a idade, a família etc.
O modelo familiar da psicanálise já se
encontrava formado desde o século XVI. A história social da criança e da família,[2] de
Philippe Ariès, remonta a formação da família moderna ao século XIV. Os estudos
do autor acerca da iconografia tradicional desde o século XII mostram a variação
de papéis dos membros da família.
No
século XV, as crianças ainda estão ausentes, mas as mulheres participam do
trabalho e vivem perto do homem. Através da iconografia da época, Ariès vê que
“o artista sente a necessidade de exprimir discretamente a colaboração da
família, dos homens e das mulheres da casa, no trabalho cotidiano, com uma
preocupação de intimidade outrora desconhecida.”[3]
Ao
longo da história da iconografia familiar, a criança e a mulher sofrem
constantes deslocamentos. Primeiro, a criança inexiste, para depois aparecer no
centro da composição familiar, salientada como um laço afetivo que une seus
membros. Seguem-se infinitas imagens das mães “virando a criança no berço, a
mãe amamentando a criança, a mulher fazendo a toalete da criança, a mãe catando
piolho na cabeça da criança”.[4]
Nos
séculos XVI-XVII, o sentimento da família emerge inseparável do sentimento da
infância, perfazendo, assim, o sentimento mais geral de família. As
modificações do modelo familiar seguiram, ao longo da história, a necessidade
de manter a integridade do patrimônio indivisível.
A família patriarcal judaica já operava
com o modelo da primogenitura como uma forma de salvaguardar o patrimônio e sua
integridade. Os patriarcas estendiam o modelo familiar às relações de
parentesco, casando os filhos e as filhas dentro da linhagem familiar. No
modelo que retorna nos séculos XVI-XVII, segundo Ariès, a família conjugal
tornou-se, mais uma vez, independente. No entanto, a classe nobre não voltou à
família de laços frouxos do século X. “O pai manteve e até mesmo aumentou a
autoridade que, nos séculos XI-XII, lhe fora conferida pela necessidade de
manter a integridade do patrimônio indiviso.
Por outro lado, sabemos que, a partir do
fim da Idade Média, a capacidade da mulher entrou em declínio.[5] A família cumpre, na história, um duplo
papel, ora funcionando como refúgio em tempos de crise do Estado, o lugar
seguro que protege o indivíduo ameaçado na fase em que o Estado e as
instituições estatais enfraquecem, ora é ela mesma que se refugia no Estado.
A família e o Estado se complementam
quando, mutuamente, oferecem garantias suficientes um ao outro. Quando o Estado
se esquiva da opressão da família e os laços de sangue se afrouxam, a ordem
social balança. “A história da linhagem é uma sucessão de contradições e
distensões, cujo ritmo sofre as modificações da ordem política.”[6]
O Estado, quando faz da família sua célula
social, não é mais o indivíduo que se refugia na família; é o Estado que vê na
família sua garantia. A mulher recebe funções domésticas, enquanto o marido
recebe poderes de Estado. “Essa evolução reforça os poderes do marido, que
acaba por estabelecer uma espécie de monarquia doméstica.”[7]
A partir do século XVI, a legislação
coloca a figura do pai como máquina social. “A autoridade do marido dentro de
casa tornava-se maior, e a mulher e os filhos se submetiam a ela mais
estritamente.”[8]
A família torna-se celula matter da sociedade, a base do
Estado, o fundamento do poder monárquico. Philippe Ariès vê isso se modificando
dentro da história: na savana africana, por exemplo, a idade das crianças (ou
dos adultos) tem uma noção bastante obscura. Nós aprendemos a marcar o tempo e
as fases do desenvolvimento por blocos de tempo que incluem o desenvolvimento
físico e da personalidade.
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