Devires na literatura IV


 No Anti-Édipo, assim como em Kafka, é uma operação sobre o desejo. Desde que o homem teve vergonha do próprio desejo, é porque existe dentro dele um sistema de juízo que o acusa. Em Kafka, todos os acusados já são condenados. A máquina judiciária tem muitas portas, mas todas dão na condenação. A respeito dessa condição, Modesto Carone nos apresenta a Pequena Fábula de Kafka, em que um rato é o personagem:

Ah, disse o rato, o mundo torna-se cada dia mais estreito. A princípio, era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente viaaà distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa umas para as outras que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro. – Você só precisa mudar de direção, disse o gato e devorou-o.[1]

A imagem do rato remete a uma vida de fuga pelo medo de seus predadores. Por isso, ele escava infindas bifurcações. No processo, a palavra de defesa se vê perdida e capturada em sua própria trama. No caso do desejo já envergonhado, não pode impedir a ação dos fantasmas, não pode garantir sua excomunhão, pois a forte consciência do homem ressentido se antecipa às pretensões do apossamento cognitivo (do mundo).
Nesse caso, o desejo já se encontra inscrito em uma palavra, uma lei qualquer que funciona como significante, e daí em diante o desejo já se envergonha de ser revolucionário. Qual é a saída? Através da literatura, Kafka cria uma saída sutil por uma porta estratégica, constituída por ele mesmo. Seria necessário encontrar o desejo lá onde ele desmensura as palavras. É um movimento de genialidade, usar a própria realidade para afrontá-la. Ainda estamos no plano do desejo. Sabemos que as grandes estruturas são investimento de desejo em estado despótico. A família e as grandes formações, a língua oficial, a literatura dita maior, todos são níveis diferentes de agenciamento do desejo.
Mas há um momento anterior em que o desejo se encontra em seu estado revolucionário – nesse momento, o desejo opera com semipalavras, nos termos de Deleuze/Guattari, em uma língua menor. Há uma intensidade por trás dessa língua, por dentro dessa literatura. É o desejo em seu estado puro que circula nas imagens não humanas. É o desejo que, como real, é incognoscível, mas motiva a cognição; é inapreensível, mas proporciona a objetivação.
Trata-se de um plano esquizo, longe da determinação do outro que definiu o conjunto de efeitos da fala que o faz ser. Graças ao dom da palavra, mas afetado pelo estado de coisas, o escritor é levado pela vertigem a se reinventar em um outro do Outro, revertendo a máxima. Ou seja, não fugir do mundo pela porta dos fundos, mas abrir inúmeras bifurcações para entrar no mundo, essa é a operação n-1 do rizoma.
Fazer o múltiplo sem acrescentar uma dimensão superior, mas, ao “contrário, de maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que dispomos, sempre n-1. Um sistema assim poderia ser chamado de rizoma”.[2] Entrar no mundo é o mesmo que sair para o mundo. A entrada é uma, mas as saídas são múltiplas, desde que se crie: escavar uma toca que prolifere saídas para fora e se dispor a encontrar nos labirintos do inconsciente apsicológico sua própria sentença com amplos direitos de defesa.
À sua maneira, Kafka, ao protagonizar a condenação de tantos de seus personagens, impede, ao mesmo tempo, que seja um Outro que defina sua própria sentença. Não é mais um significante despótico que determina sua escritura; são os afectos, o devir-animal e o devir-criança. Ainda é o desejo que trai as autoridades. De maneira derrisória, o escritor tcheco mostra a corrupção e a debilidade do poder. Não mais o desejo que se remete a um sujeito ou que se destina a um objeto. Mas aquele que se encontra em todos os objetos – no caso, nos personagens, nos sons e nos animais.


[1] CARONE, Modesto, op. cit., p. 34.
[2] DELEUZE,G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux,  p. 13.

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