Embriaguez II


Despedimo-nos da psicanálise no momento em que essa fica presa à produção de fantasmas para a realização do desejo. Ou seja, logo que haja uma nova excitação, produzir-se-á, graças à ligação que foi estabelecida na primeira experiência de satisfação, uma moção psíquica que procurará reinvestir a imagem mnésica dessa percepção (e até mesmo invocá-la), isto é, estabelecer a situação da primeira satisfação: a essa moção, a psicanálise vai chamar desejo; o reaparecimento da percepção é a “realização do desejo”.
A procura do objeto no real é inteiramente orientada por essa relação com os sinais. É a articulação desses sinais que constitui aquele correlativo do desejo que é a fantasia. A dependência nasceria desse complexo sistema: marcas mnêmicas que produzem a ilusão de um objeto perdido, dependência física em relação à química, incapacidade do usuário em lidar com suas questões existenciais etc.
O experimentador em Castañeda não está em busca dos fantasmas, não é esse o propósito da experimentação, a busca de um objeto perdido, mas de uma faculdade perdida, da capacidade de tocar outros mundos, de experimentar outras realidades. No caso de Don Juan de Malta, trata-se da abertura à imaginação, e ele tinha consciência disso. Não é o caso de acreditar em uma alucinação, que seria outra coisa; trata-se de um saber consciente.
O saber imaginante é uma consciência que procura transcender-se, colocar-se em relação com um externo. Não para afirmar sua verdade – aí teríamos apenas um julgamento –, mas colocando seu conteúdo como existente, por meio de certa espessura do real que lhe sirva de representante. O personagem conceitual de Castañeda fala de dois mundos: o mundo tonal e o mundo nagual. São duas realidades distintas que atravessam os indivíduos.
O mundo tonal é o mundo das formas que inclui tudo o que é pensado. “Somos um sentimento, uma consciência encerrada ali”, toda forma de conhecimento se encontra no mundo tonal. O que o guerreiro busca na relação com a mescalina é romper as barreiras que mantêm a consciência confinada no interior das muralhas do mundo tonal. A existência do mundo tonal é que abre as condições de possibilidades de adentrar em outro mundo, o mundo naqual, do qual falaremos mais adiante. É que, para se sair do mundo, distanciar-se dele, é preciso ter entrado nele. Daí a importância desse duplo da consciência imaginante (tonal/nagual), que é constituir um mundo como totalidade material sensível e debruçar-se sobre a eternidade, imaginada como fora de alcance em relação a esse mundo tonal.
Sartre diz o seguinte: “Para que uma consciência possa imaginar, é preciso que, por sua própria natureza, possa escapar ao mundo, é preciso que possa extrair de si mesma uma posição de recuo em relação ao mundo.” É preciso estar no mundo, mas, ao mesmo tempo, saber que a situação de estar no mundo esconde (um) outro mundo em que as relações de sujeito e objeto estão suspensas.

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