Pequeno Hans V


Nas tribos indígenas, os nomes se relacionam com a natureza, os pássaros e os animais. Mesmo em nosso caso, herdeiros da cultura europeia, “um homem dos séculos XVI e XVII ficaria espantado com as exigências de identidade civil a que nos submetemos com naturalidade”.[1]
Essas determinações segmentam tempos e espaços de ocupação social. Tempo da casa, tempo da escola, tempo da caserna, tempo da fábrica. São “as idades da vida” que definem a segmentaridade geral.
Kafka viu a autoridade do pai disseminada por toda a sociedade. É o Estado que, historicamente, investe o pai para que possa exercer funções de Estado. É um engano, nesses dias de “desordem da família”, em que o pai se encontra descentrado de seu lugar, acreditar na tão sonhada revolução da família. O mesmo se deu no ateísmo da psicanálise: matou-se Deus para levantar, em seu lugar, o nome do pai, um Deus na terra feito homem-lei.
Nesses dias de “des-ordem”, destitui-se o pai de seu lugar seguro, mas se ergue a lei proveniente da autoridade do pai, qualquer função de autoridade é pai: o professor na escola, o rabino, o padre, o pastor na igreja, o chefe na repartição, a polícia na rua etc. Pode haver até mesmo um saudosismo de pai, mas o nome do pai, a lei do pai, sua autoridade milenar, tudo isso está mais forte do que nunca.
Devemos descobrir qual é o sentido de toda essa autoridade. Não seria o mesmo, o de barrar os agenciamentos do desejo em seu princípio de desterritorialização? Édipo é a polícia de Estado dentro de casa. A ilusão da liberdade contemporânea consiste em se ter uma vasta campina, de forma a não se perceber a onipresença da autoridade. Estratégia pastoral: a melhor forma de controlar um rebanho é dar-lhe uma vasta campina.
O caso do “Pequeno Hans” é atual nesse sentido: seu agenciamento maquínico é partido em três, ser-lhe-á permitido ir à rua, mas acompanhado de autoridade. O pai estará presentificado no cavalo e em todos os seus objetos. O cavalo será a cada momento e cada vez mais profundamente colado às figuras da mãe, do pai e do fálus.
Logo, os objetos (rua, cavalo que cai, as chicotadas...) serão causas de angústia. A angústia é remetida à rua e à mãe, no primeiro momento. Posteriormente, será movida, fixada e aprofundada no medo de ser mordido por um cavalo, por qualquer cavalo (autoridade por extensão), como uma fobia do cavalo ligada ao pai. Depois o cavalo é associado a um grande faz-pipi que morde e, com isso, o último agenciamento e última tentativa de desterritorialização no devir-animal é quebrado ao ser novamente traduzido na territorialidade da triangulação familiar. Há um sentido no deslocamento da mãe para o pai e depois para o fálus? É que a mãe ainda não dispõe de autoridade suficiente, o que poderia deixar o fluxo de desejo demasiadamente solto, levando aos riscos de uma dispersão territorial. Não esquecer que é a mulher que entra em devir.
A sociedade se define pelo fálus, mas é o pai que o detém. A última muralha ainda é a autoridade do pai, para que a triangulação se faça como operação estrutural e estruturante. Somente assim, o desejo, antes revolucionário, será castrado, socializado, domesticado e sublimado.
O sentido último do poder sobre uma criança é fazer com que o desejo se reprima a si mesmo, então a operação estará encerrada. Com a lei interiorizada, é o próprio indivíduo que passa a se reprimir. E mais grave ainda: segundo Espinosa, “lutar escarniçadamente pela servidão”. É porque, a esta altura, o desejo não suporta mais intensidades, tomando como base o modelo histérico (hoje transtorno somatoforme) no qual as intensidades, sem vias de agenciamentos coletivos, se voltam para o próprio corpo. As intensidades são quebradas, os enunciados sofrem, ao modo kafkiano, uma “extrema formalização jurídica”, quando se torna impossível falar a partir de seus próprios afectos.



[1] Idem, p. 29.

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