Máquina de guerra da infância II
Em Deleuze/Guattari, com a interpretação dos enunciados na psicanálise
da criança, é possível entender melhor do que em outros tipos de análises
(adultos) como os enunciados e devires podem ser esmagados e sufocados. Em
ambos os casos, do pequeno Hans e do pequeno Richard, é quase impossível
produzir um enunciado ou um desejo real sem que seja rebatido para o centro de
convergência da interpretação já pronta e codificada. A criança já entra no
jogo psicanalítico derrotada. Deleuze (Dialogues, 1977, e Critique et
clinique, 1993) e, depois, com Guattari (Anti-Édipo, 1972, e Mille
Plateaux, 1980) tomam a experiência de Hans, em que o analista escuta,
retém, traduz ou fabrica a partir do que foi dito. A produção de enunciados da
criança vai aos poucos cedendo o status
singular para retornar em forma de subjetividade do analista: ele funciona como
uma máquina de produção de sentido segunda.
As tentativas de agenciamentos maquínicos da criança e seu devir-animal
vão sendo sufocados. Hans quer descer as escadas para se juntar à sua amiguinha
Mariedl e dormir com ela. Segundo os autores, “movimento de
desterritorialização pelo qual uma máquina-menino se esforça para entrar em um
novo agenciamento”.[1]
Hans vem de um agenciamento com seus pais e se, na cabeça da criança,
um agenciamento não é exclusivo (não há esse tipo de interpretação), na cabeça
dos adultos é. Eles estão presos a agenciamentos excludentes: essa família, e
não outra; dentro dessa casa e fora dela; homem e mulher etc. A primeira
tentativa de desterritorialização será malsucedida, pois as premissas da casa
já definiram as “cartas do jogo”: Hans está subordinado ao modelo de
agenciamento exclusivo. Em sua compreensão, as moças da casa não são como deveriam
ser. Segundo seu ponto de vista, há algo (estranho) que o impede de ir até lá.
Mas ele não para por aí; ele faz outra experimentação (criança não desiste
nunca), decifra a economia política das proximidades de sua casa e encontra num
restaurante uma parceira mais adaptada às suas intenções: “uma mulher” em
espaços abertos. É a segunda tentativa de desterritorialização do espaço segmentário
da casa. Atravessar a rua como meio de transposição do espaço-casa.
Há, ainda, um compromisso firmado com o pai, voltar de tempos em tempos
à cama deles: reterritorializar em Édipo. Nessa negociação, Hans é levado a
pensar na pequena Mariedl ou no agenciamento-rua com a outra moça – nenhum dos
dois casos será possível. É a família burguesa que inventa o desejo pela mãe
para completar o ciclo de Édipo. O menino deseja sair para o mundo e fazer
agenciamentos com os objetos da rua, mas é com a mãe que é obrigado a
permanecer. Nesse sentido, o objeto do desejo é inventado para depois ser
proibido. Não há proibição sem objeto desejado e, como não existe objeto para o
desejo, logo deverá ser inventado. Não há por que se espantar com a fobia de
Hans; ele é forçado a voltar para a mãe como objeto dos desejos e, ao mesmo
tempo, fica proibido de obtê-la com a culpa de tê-la desejado.
Deleuze/Guattari criticam o impedimento sistemático do ato de dirigir o
desejo ao mundo, na medida em que ele é estrategicamente remetido de volta a
constelações individuais. Num só e mesmo gesto, forçado e proibido, assim lhe é
interiorizada a perversidade chamada Édipo, com quem se trava a primeira
batalha subjetiva de uma política.
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