Máquina de guerra da infância V
A fé da estrutura reside nesse ponto que faz tudo girar em torno de uma
definição fixa: os dois sexos, mesmo que se reduzam os n sexos a dois, passam a residir no interior de todos nós. Tudo
ficaria reduzido a uma questão psíquica, carrega-se uma dualidade sexual
psíquica (bissexualidade psíquica) que implica a homologia entre o desejo pela
vagina no homem e a inveja do pênis na mulher.
Tudo isso para confirmar a tese da castração; solda-se o desejo na
castração para interpretá-lo como imaginário ou simbólico. Está pronto o plano
de organização para a infindável interpretação. O jogo rico da diferença se
reduz a apenas duas: homem ou mulher; o que escapa é excluído como terceiro
estranho, mas que será reintroduzido pela intrusão de uma máquina desejante e
tudo será subvertido.
A diferença interpretada orgânica ou estruturalmente (pênis-órgão,
significante fálico) lança um erro fatal: reduzir a riqueza do desejo e da
libido às condições da sexualidade. Para Deleuze/Guattari, o que interessa às
crianças é a univocidade do material com as conexões e as posições variáveis
com que esse material se encontra no mapa de linhas que elas traçam. É a mesma
questão de posicionamento de uma máquina de guerra que funciona sem um pivô, um
general, por exemplo.
A solução sem general aparece para uma multiplicidade
acentrada que comporta um número finito de estados e de sinais de velocidade
correspondente, do ponto de vista de um rizoma de guerra ou de uma lógica da
guerrilha, sem decalque, sem cópia de uma ordem central. Demonstra-se mesmo que
uma tal multiplicidade, agenciamento ou sociedade maquínicos, rejeita como
‘intruso a-social’ todo autômato centralizador, unificador.[1]
A univocidade com que as crianças lidam diz respeito não apenas ao
pensamento do múltiplo que se remete a n
agenciamentos, mas também ao dado material n
sexos. Quando se introduz a máquina na sexualidade, já não será mais possível
falar-se de diferença entre dois sexos.
Como uma medida política arbitrária, essa posição só serve para manter
a ignorância em relação às potências criadoras da sexualidade. Por isso
dissemos: quando a criança se vê reduzida à dualidade (homologia
masculino-feminino), perde de imediato toda a sua potência.
A menina é a primeira que se vê roubada em sua potência sexual, quando
se lhe subtrai o corpo-máquina para lhe introduzir um corpo-órgão. O
corpo-máquina lhe conferiria todos os sexos (n sexos); no corpo-órgão, conferem-lhe todas as funções de mulher
predeterminadas na cultura. Percebe-se que a fobia do pequeno Hans só vai
aparecer quando os adultos estabelecem, à força, o significante fálico.
A angústia da castração só existe quando a diferença em si mesma é
substituída pela diferença dual que introduz a angústia da castração de um fálus.
Ou seja, não existe angústia nas crianças por serem diferentes; elas são
indiferentes ao fato de possuir um órgão, mas a angústia vai aparecer quando
tudo leva ao esforço da redução a um centro organizador.
No começo da vida, toda criança se vê possuidora de n sexos, que correspondem a todos os
agenciamentos possíveis nos quais entram em correspondência; os materiais são
comuns às meninas e aos meninos. O que está em jogo é muito mais as
intensidades experimentadas do que as formas percebidas. Não tem “nada a ver
com Édipo ou o tema familialista, mas com a transformação do corpo, de máquina
em instrumento. Nada tem a ver com a castração ligada ao sexo que se tem, mas
com o roubo de todos os sexos que se tinha”.[2]
A sexualidade fica, assim, reduzida à família, à castração e à
diferença binária entre os sexos; volta-se ao modelo de pensamento da moral
teológica, tendo como consequência desse modelo a homofobia da atualidade; as
crises existenciais dos indivíduos, com todos os transtornos de ansiedade
inerentes. Nesses casos, fala-se em desvios, doenças, curas e medicalização.
Só por uma questão de curiosidade: Há algum relato histórico (exceto da Roma antiga) ou pre-histórica onde o ser humano convivesse naturalmente com a multiplicidade sexual?
ResponderExcluir