Embriaguez - conclusão

Castañeda admite o tema dos “dois mundos”, mas não é o caso de interpretar o olhar do antropólogo e tomá-lo literalmente. Os dois mundos, de que lhe fala o feiticeiro, são duas realidades do mesmo mundo, como já dissera. “A coisa especial a se aprender é como chegar à fresta entre os mundos e como entrar no outro mundo. Não se trata do mundo dos corpos, mas de estados de acontecimentos, quando os estados de coisas ou misturas dos corpos, dos “acontecimentos incorporais na superfície, que resultam dessas misturas”,[1] operam uma cisão totalmente nova da relação causal. O feiticeiro introduz Castañeda na experimentação estóica, na inversão do tempo e da linguagem calcados em limites fixos. Eles fazem da droga um meio de ultrapassar esses limites estruturais, “e os restituem à equivalência infinita de um devir ilimitado (...) o devir-ilimitado é o próprio acontecimento”.[2]
O acontecimento é “coextensivo ao devir, e este, por sua vez, é coextensivo à linguagem”. A linguagem corresponde à superfície imediata que se expressa no tempo. Nesse sentido, esses experimentadores conseguem penetrar naquilo que só a literatura pôde descrever através de seus personagens (Alice): eles observam de perto “o paradoxo que aparece como destituição da profundidade, exibição dos acontecimentos na superfície, desdobramento da linguagem ao longo deste limite”.[3]
Muito mais do que sob o efeito de drogas, eles estão sob o efeito do devir-ilimitado, “o devir-louco” é desmedido, atravessa as coisas e suas qualidades como fluxo caótico que introduz o paradoxo. “O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom-senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas.”[4]
Nas descidas, nas subidas, tudo deve ser feito com prudência, “nenhum gesto demasiadamente violento faça saltar os estratos sem prudência, e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, em vez de traçar o plano”.[5] O personagem conceitual de Castañeda diz: “é preciso desfazer sua identidade pessoal”, este é o maior desafio do guerreiro, pois consiste em quedas profundas, riscos de entrar num buraco negro, de se emaranhar em linhas confusas e nelas se perder.
A questão é a da construção de um corpo sem órgãos; no meio do caminho, encontra-se o tonal: ele é o organismo, que somos nós mesmos, e desfazer o organismo é o mesmo que entrar na esfera do nagual, equivalente ao corpo sem órgãos de Deleuze/Guattari. O tonal é organizado e organizador, o conjunto de todos os estratos: “o organismo, a significância e a subjetivação”.[6] O tonal é tudo, inclusive Deus, ele é mesmo o juízo de Deus. Um erro, um desvio, uma imprudência na construção do corpo sem órgãos, e o juízo de Deus cairá com mais peso sobre o indivíduo. O tonal é um território, uma ilha Eu, tudo o que se pode sentir, ver, pensar, perceber. Mas o nagual é o resto que não se percebe, que não se sente, enquanto não se entra em micropercepções.
O organismo é substituído pelo corpo sem órgãos e as interpretações são substituídas pelas experimentações, então “os fluxos de intensidades, seus fluidos, suas fibras, seus contínuos e suas conjunções de afectos, o vento, uma segmentação fina, as micropercepções, tudo isso substituiu o mundo do sujeito”.[7]
O tonal é o mundo dos estratos e das formas (estratosfera); o nagual é o lado molecular e das micro-processualidades, plano de organização e plano de consistência, composição e imanência. O que se quer demonstrar é que os estratos não são a única maneira de ver o mundo. Junto ao plano de organização e desenvolvimento que governa o surgimento das formas e dos indivíduos, aparece outro plano de consistência ou de composição, no qual pululam multiplicidades pré-individuais, compostas por materiais que se relacionam segundo seus diferentes tipos de velocidade e por efeitos intensivos.
Estratos, plano de consistência e as multiplicidades de que fala Deleuze são as hecceidades de Duns Scott ou o conatus de Espinosa; em realidade, as “multiplicidades” coexistem, interagem em um mesmo “plano de consistência”, que funciona como uma “máquina abstrata” que, nesse momento, é sinônimo de uma máquina de guerra nômade.
Existe uma fresta entre os dois mundos: o mundo dos diableros e o mundo dos homens vivos. Existe um lugar onde os dois mundos se sobrepõem, uma fresta onde o mundo se dobra e desdobra. “Abre e fecha como uma porta ao vento.”[8] A tarefa é ir lá na fresta, sem o auxílio de qualquer objeto, exercendo apenas a vontade própria.
Quando se encontra um padre perseguindo “as borracheiras” – as noites de bebedeiras indígenas –, ali se encontra um Estado subjugando uma máquina de guerra, subordinando os guerreiros das florestas.[9] É nesse sentido que o Estado se apropria da máquina de guerra, “sob a forma de exércitos nacionais que limitam estritamente os devires do guerreiro”. Os índios sempre pertenceram ao Diabo, diz o Frei D’Abbeville.[10]
A ordem dos padres jesuítas não se contenta em arranjar justificativas científicas para os males das bebidas indígenas; era preciso associá-las às forças demoníacas tão em voga na Europa da Contrarreforma. A política de feitiçaria é extrínseca ao Estado, assim como o devir-animal corre pelas bordas de suas fronteiras. É toda uma política que segue na contramão do Estado. É diferente do jogo sujo de milícias que se organizam dentro do Estado; igualmente, não corresponde às forças criminosas das falanges marginais que, beneficiando-se do Estado, mantêm-se dentro dele.
A máquina de guerra dos feiticeiros não se encontra no Estado, não que seja contra o Estado, em essência: um aparato de guerra indígena nunca será do Estado sem que esse a subverta a seus termos. “Mas será também a morte do feiticeiro, como aquela do devir.”[11]




[1] DELEUZE, G., Lógica do sentido,  p. 6.
[2] Idem, p. 2.
[3] Idem, p. 9.
[4] Idem, p. 3.
[5] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mille Plateaux, p. 198.
[6] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 197.
[7] Idem, p. 199.
[8]  CASTAÑEDA, C., op. cit., p. 233.
[9] O domínio sobre os povos indígenas da América Latina e demais povos de além-mar dependia da erradicação de seus rituais, de suas bebidas, de suas plantas, ervas medicinais, suas danças sagradas e festas. Sobre o tema, ver VENÂNCIO, Renato Pinto e CARNEIRO, Henrique (org.). Álcool e drogas na história do Brasil. Belo Horizonte: Editora Puc-Minas, 2005.
[10] D’ABBEVILLE, Claude. Histoire de La mission pares capucins em L’Lesle de Maragnon et terres circunvoisynes. Paris: Imprimerie de François, 1614, p. 239.
[11] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 303.

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