Pequeno Hans III
Trajetos e devires, juntos, são uma grade (gradiente) de linhas se
movimentando, fazendo e desfazendo trajetos. O devir é o que põe o indivíduo
dentro dessas linhas, e o conduz à complexidade e aos redemoinhos do próprio
mundo, tornando-o torna imperceptível às forças do intolerável. Arrastado
pelo devir-cavalo, Hans estaria livre das dualidades impostas ao corpo. As
diferenças do corpo não lhe diziam mais do que o modo como funcionava; em devir
é o mesmo corpo intensivo e estilhaçado. Desde o jejuador até o homem-inseto,
os personagens de Kafka reivindicam um corpo “afetivo, intensivo, anarquista,
que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes”.
Como dizem Deleuze/Guattari, num tal corpo se desfazem e se embaralham
as hierarquias, “preservando-se apenas as intensidades que compõem zonas
incertas e as percorrem a toda velocidade, onde enfrentam poderes, sobre esse
corpo anarquista devolvido a si mesmo. Em suma, o combate como uma “poderosa
vitalidade não orgânica, que completa a força com a força, e enriquece aquilo
de que se apossa”.[1]
Isso é o que deveria acontecer sem a interpretação forçada que produz a
angústia, que culpabiliza, deprime e imobiliza, produzindo a tristeza no
sentido espinosano. A alegria se torna impossível, e o aparelho da repressão
faz do desejo uma vergonha. O desejo que deveria afrontar o recalque secundário
é ele mesmo recalcado. A vergonha do desejo vem do fato de se soldá-lo aos
componentes sexuais restritos e proibidos, por isso se justifica a santa causa
de recalcá-lo, mas ele retorna sempre, causando culpa, lembrando tudo que é
proibido e tem cheiro de pecado.
No artigo “Desejo e prazer”,
Deleuze considera que aí se encontra precisamente o efeito de repressão na
fronteira do micro e do macro, “como agenciamento de um desejo historicamente
variável e determinável, com suas pontas de desterritorialização, de fluxo e de
combinações – será assentada sobre uma instância molar, o sexo”.[2]
No agenciamento cavalo, o poder de ser afetado se vê preenchido por afectos
de domesticação, impotência e brutalidade, assim como de potência, firmeza e
força ativa. O plano que se desdobra na neurose de angústia (Hans) não pode ser
visto de uma forma simples pela passagem do desejo à angústia-medo. O desejo
depara, a princípio, com um medo que só se transforma em angústia na sequência
em que entra em cena a operação familiar e edipiana.
O devir-animal funcionaria como uma linha de fuga ativa para levar Hans
à rua. O desdobramento com o agenciamento-rua, praça e mundo levaria Hans a
descobrir os verdadeiros motivos do bloqueio familiar e edipiano. O
devir-animal impulsiona o desejo na direção de seu limite. O limite imposto
pela família edipiana é o da desterritorialização, ou seja, lá onde o desejo
deseja sua própria repressão. Para que se faça um afrontamento de tal ordem, é
“importante”, não se deveria caminhar na direção das filiações do tipo
papai-mamãe. Deve-se seguir a direção do afrontamento, que se remete mais às
lanças e às ligas, que, para Deleuze “não são os hereditários, os descendentes,
mas os contágios, as epidemias. (...) Um animal se define menos por seu gênero
ou sua espécie, seus órgãos e suas funções, do que pelos agenciamentos nos
quais ele entra”.[3]
Tal agenciamento, homem-cavalo, é um agenciamento de guerra; no cavalo,
há graus de potência de liberdade. Um cavalo pressupõe espaços lisos, exceto
quando domesticado, preso nas baias, com estribos, sob as esporas do cavaleiro
que o chicoteia. Tudo isso serve para conter a potência de liberdade do cavalo.
Quando o homem entra em afinidade com o cavalo, é o mesmo que se diz do
devir-animal. Ambos tornam-se um conjunto de corpos, os afetos dos dois atravessam
um e outro, entram numa linha indiscernível. “O homem e o animal entram em uma
nova relação, um não muda menos do que o outro, o campo de batalha se preenche
de um novo tipo de afetos.”[4]
Havendo respeito ou não, brutalidade do cavaleiro que amansa o cavalo,
ainda assim, no universo das máquinas um phylum maquínico há de tomar os
acessórios (estribo, chicote, chicotas e a cela), perfazendo um agenciamento
tecnológico e social. “No caso do estribo, é a doação da terra, ligada pelo
beneficiário à obrigação de servir ao cavalo, que vai impor a nova cavalaria e
captar a ferramenta no agenciamento complexo: feudalidade”.[5]
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