O fora II
Dizíamos
da dificuldade de pensar a unidade homem-natureza, tal dificuldade nos levou
construir um edifício de conhecimentos em cima de uma ignorância. Pela ausência
de um terceiro termo que unificasse homem e natureza, o pensamento se orientou
pelo bom senso que pensa apenas na separação de onde vem o verdadeiro. “A
totalidade do ser” não pôde ser percebida. Diz Don Juan, “você está em algum
ponto no meio, ainda querendo ter tudo sob a rubrica da razão”[1],
por isso, nem pôde pensar o outro gato, nem mesmo sabia o nome do outro. “Você
com sua razão eu com minha vontade”. Os nomes podem não ser os
mesmos – Nietzsche e Castañeda -, na mão de um, “vontade” é conceito, na do
outro é pré-conceitual. Mas não importa se a questão é a unidade ou, para não
se afastar muito, é a univocidade do Ser. No fim de tudo, “ter de acreditar que
o mundo é misterioso e insondável era a expressão da preferência íntima do
guerreiro. O índio não conceituou a “vontade de potência criadora”,
misteriosamente ele a habitava. Numa espécie de amor potente pela vida o
guerreiro vê o mundo através de uma
“ilha tonal”, carregando os fardos de seu tonal sem o ressentimento do “homem
verídico”. A compreensão advinda da percepção da totalidade do ser é maior do
que se possa sintetizar no sistema sensório motor a serviço da razão. “Eu diria
que o tonal e o nagual estão no domínio exclusivo dos homens de conhecimento. No
seu caso, essa é a tampa que fecha tudo quanto lhe ensinei”.[2]
Se o tonal é tudo o que somos, tudo o
que tem um nome, como poderemos pensar ele por ele mesmo? Como pensar o nagual pelo tonal? Enquanto o tonal
for esse “guarda mesquinho e despótico” nada pode ser feito. Mas não podemos
nos livrar dele, podemos torná-lo um “guarda de larga visão”. Tudo o que
pensamos faz parte do tonal, mas o nagual está ali rondando a ilha. Suely
Rolnik[3]
lembra que a neurociência tem descoberto que a nossa estrutura cerebral contém
uma dupla capacidade por trás de nossos sentidos, uma cortical e outra
subcortical. A primeira nos possibilita apreender o mundo em sua forma imediata
para depois projetar nela o sentido que dispomos em nossa memória. Esse nível
de percepção se encontra relacionado ao tempo, a história e ao sujeito. Só
podemos perceber aquilo que se mostra à primeira estrutura cortical. Uma mesa só
pode se apresentar pela perspetiva que à percebemos. É, ao mesmo tempo a nossa
condição de perceber, e a maneira como a mesa se deixa ser percebida. São essas
condições que tornam a mesa universalmente reconhecida. Percebemos linhas
segmentarizadas que compreendem uma exterioridade. É o hábito que nos capacita
construir um mapa mental e por ele nos guiarmos. Vemos porque (re)conhecemos e
nos reconhecemos nesse mapa. Nos movemos num sítio cujo hábito nos faz crer que
as coisas permanecem estáveis minimamente. Por baixo da estrutura cortical
funciona a subcortical habita uma região pouco conhecida, resultado de milênios
de repressão. Essa área extremamente importante de nosso cérebro permite a
apreensão do mundo em sua forma de puro campo de forças. O que chega ao nosso
corpo em forma de pura sensação. Francis Bacon traduziu isso em sua pintura. A
história do sujeito e da linguagem não engloba essa área mental-cerebral. Pelo
menos assim parece suceder em nossa cultura ocidental. Através desse sistema a
vida pré-subjetiva é uma presença viva, “feita de uma multiplicidade plástica
de forças que pulsam em nossa textura sensível, tornando-se assim parte de nós
mesmos”.[4]
Com o primeiro sistema (sensório motor) construímos a relação sujeito-objeto e
nos separamos do resto do mundo. Mas o “corpo vibrátil” permanece fazendo parte
do todo corporal. A totalidade do ser se compõe de um mundo tonal/nagual. Não é uma dualidade nem uma divisão do mundo em dois, mas a
coexistência de duas realidades coexistentes “É nosso corpo como um todo que
tem esse poder de vibração às forças do mundo”. O pensamento se dá nessa
relação paradoxal de forças, um corpo que sente as sensações, e que põem em
crise nossas referências e impõe a urgência de inventarmos novas formas de
expressão. Por essa porta que não se fecha, entra em nós um mundo de sensações
puras, marcam nosso corpo com signos do mundo que incorporamos ao nosso
território existencial. Nós mesmos passamos por processos de
desterritorialização e reterritorialização. Nosso mapa está em transformação
continuada. Se pela primeira forma de perceber nos situamos por processos de
subjetivação, na segunda maneira de receber o mundo entramos em processos de
singularização. Somente se singulariza por “vibrações que não se reduzem às
propriedades do sujeito”, são vibrações que produzem sensações nas propriedades
que definem o sujeito.
O que faz uma singularização? O individuado é antes “um grau, uma
intensidade, uma hecceidade”, é o que
Deleuze diz em Lembranças de um teólogo.[1]
Duns Scott leva o indivíduo da subjetividade a esse nível irredutivel da
singularidade contida na expressão hecceidade.
O indivíduo alcança a singularidade não por causa de sua extensão no mundo mas
por se tornar um único onde nenhuma sinal se repete num outro. Não é a
singularidade da forma, mas a singularização que faz fugir da forma. Nessa
passagem de um sujeito subjetivado para um indivíduo individuado, abre-se uma
crise que impõe uma revisão da paisagem subjetiva e objetiva. É que precipita
aquilo que Rolnik chama de “subjetividade flexivel”.
São duas constatações.
A primeira é que os dois mundos (tonal e nagual) coexistem, são
realidades paralelas.
A segunda constatação é que o deslocamento não se faz necessariamente
com o auxílio de alguma coisa fora do sujeito. A questão no momento é o peiote,
ainda servindo como um meio para se alcançar uma nova arma.
[1]
CASTAÑEDA, C. Porta
para o infinito. Tr. Luzia M. Da
Costa. Rio de Janeiro: Nova Era, 1998, p. 104.
[2]
Idem, p. 110.
[3] ROLNIK. S, Geopolítica da cafetinagem. In: Fazendo
rizoma. Fortaleza: Editora Edra, 2008, pp. 25 – 44.
[4]
ROLNIK. S, Geopolítica da cafetinagem. In: Fazendo
rizoma. Fortaleza: Editora Edra, 2008, p. 28.
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