Os devires na literatura: Kafka e a máquina de guerra literária




Kafka mostra, através da literatura, aquilo que Deleuze/Guattari dizem quanto à segmentação, o fato de sermos “segmentados por todos os lados e em todas as direções”.
O isolamento e a culpa de seus personagens dizem o tempo todo: “O homem é um animal segmentado.”[1] Mostra que a autoridade tomada como padrão subjuga qualquer discurso, condena todos à clandestinidade, esmaga qualquer produção de enunciado. Mostra, com isso, que é a autoridade é que faz ser como. Por outro lado, sua obra afronta o poder quando o expõe em seu funcionamento.
Em O processo, Joseph K se vê apelando a uma autoridade suprema de onde produz o próprio discurso de defesa e que não permite recurso algum. Algo semelhante ocorre quanto à autoridade do pai, que, sendo ele mesmo o que autoriza a fala, controla os fluxos e os recursos de apelação dentro da família. É o pai que dá o nome, a fala e, consequentemente, o fálus. É a autoridade do pai que subjuga e distribui os papéis da defesa e da apelação. O pai dá o veredicto. “Em lugar do nome da história, o nome do pai: aquele que é a lei, a primeira experiência de justiça, aquele que, ao dizer não, interrompe qualquer fluxo, barra qualquer fuga, dá estabilidade.”[2]
É da autoridade do pai que vem o significado da vida do filho. Para Deleuze, o pai deveria ter a função de entrada no mundo; apenas a entrada como meio para que o filho atinja seus próprios fins. Mas o Estado confere ao pai uma autoridade e funções que não são suas. Kafka demonstra o abalo dessa realidade quando amplia a autoridade paterna à dimensão do mapa-múndi. A história em seu fluxo louco desterritorializa esse lugar privilegiado de identidade fixa que era o nome do pai.
A paranoia da sociedade burguesa, antes no anonimato, agora capitalista, faz esses nomes se perderem como polo referencial das identidades masculinas. Ao ampliar a figura do pai na proporção-mundo, Kafka prenuncia que outras instâncias passam a ter importância central na produção e na distribuição de sentido e modelos para a produção de subjetividade masculina. Conforme Roudinesco, a antiga família se encontra em desordem.[3] O Estado, a empresa, a instituição pública e os aparelhos de mídia passaram a assumir esse papel central, desde que a economia política e as leis de mercado submeteram e subverteram a família, ou seja, a família vive um processo de desfamiliarização. O pai ficou pequeno e não percebeu. A autoridade do pai sai do espaço familiar/privado e se pulveriza nos espaços públicos.


[1] DELEUZE, G. e GUATARRI, F., Mille Plateaux,  p. 254.
[2] RAGO, M. et al. Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas, p. 113.
[3] ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2003.

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