Embriaguez III

Don Juan afirmava que, para ver, era preciso necessariamente deter o mundo. Deter o mundo exprime perfeitamente determinados estados de consciência durante os quais a realidade da vida cotidiana é modificada, isso porque o fluxo das interpretações, normalmente contínuo, é interrompido por um conjunto de circunstâncias estranhas a esse fluxo.[1]

A consciência livre, “cuja natureza é ser consciência de alguma coisa, mas que por isso mesmo constitui-se ela própria diante do real e a cada instante o ultrapassa”, nessa capacidade de ultrapassar o real, não se reduz à consciência do cogito, mas é nele que se revela enquanto “estiver-no-mundo”, ou seja, vivendo sua relação com o real como situação.[2]
Na experiência indígena, a relação se estabelece na duplicidade tonal/nagual. O mundo dos homens é o tonal, mas o mundo dos demônios é o nagual. A finalidade da experimentação é levar a consciência à sua própria desmensura. É o elemento anômalo de que tratam Deleuze/Guattari no platô de número (10 – 1730, devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível).[3] O tipo de aliança que o feiticeiro trava com o anômalo requer prudência. As minúcias, os inúmeros detalhes do protocolo do feiticeiro mexicano têm essa única finalidade: ficar em uma situação constante de aliança com a potência anômala. Eles sempre “tiveram a posição anômala, na fronteira dos campos ou dos bosques. Eles assombram as fronteiras. Eles se encontram (...) numa relação de aliança com o demônio (...) na borda do vilarejo, ou entre dois vilarejos.”[4] Para permanecer bordejando a fronteira entre o visível e o não visível, é necessário perceber o jogo de permanência. Estados de consciência com o mínimo de eu. Daí a necessidade de conservar alguns órgãos em um estado mínimo necessário para se andar no mundo.
A prudência deve levar em conta os fatos de se estar em relação com as forças de uma natureza desconhecida. Tal relação “implica uma primeira relação de aliança como um demônio”.[5] O que apavora é essa entrada sombria do desconhecido, o contágio de uma estranha peste. “Porque este demônio exerce a função de borda de uma matilha animal na qual o homem passa ou está em devir, por contágio”.[6]
Em outros termos, Freud já teorizava essa fronteira entre as forças anímicas e as forças somáticas, o que, para a Filosofia da Diferença, seria o campo das singularidades pré-individuais. “A instância que existe entre o caos absoluto e o mundo das ‘formas’.”[7] Não é o abismo indiferenciado, nem o “caos absoluto”, onde as determinações são impossíveis. Trata-se, sim, segundo entendemos, do inegendrado corpo sem órgãos, lugar da gênese em que se começa a criar um “ser”. “Primeiro momento da diferenciação da matéria.”[8]
O “outro mundo” não é exatamente outro (hétero), o feiticeiro sabe disso: “Você acha que há dois mundos para você... dois caminhos. Mas só existe um (...). O único mundo possível para você é o mundo dos homens, e esse mundo você não pode resolver largar. É um homem!”[9] Esse mundo de que nos fala Castañeda nos parece ser o mesmo “espaço entre vilarejos” de que nos dizem Deleuze/Guattari, anteriormente citado.
A prudência se destina aos experimentadores que, muitas vezes, agem de forma temerária e comprometem todo o experimento. Para continuar o experimento, é preciso preservar um fio para guiar os sentidos na escuridão do caos, assim como as crianças cantarolam ritornelos para espantar os maus espíritos e os fantasmas que vêem causam a desmesura em seus pensamentos. Uma medida territorial necessária que o ritornelo da criança garante em forma de estabilidade. Um território seguro para prosseguir com os experimentos infantis. “Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela para, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha.”[10] É também o fio da aranha que a conduz para o centro ou em busca do alimento no ato de vibrar os fios que ela tece cuidadosamente.



[1] Cf. DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mille Plateaux,  p. 173.
[2] SARTRE, J, P. O imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação. Tradução de Duda Machado. São Paulo: Ática, 1996, pp. 240-242.
[3] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux,  pp. 284-380.
[4] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 300.
[5] Idem, p. 301.
[6] Idem, ibidem.
[7] SCHÖPKE, R. Matéria em movimento: a ilusão do tempo e o eterno retorno. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 362. O que a autora está falando “aqui de ‘mundo das formas ‘é o mundo dos indivíduos, dos corpos, o mundo físico, ao contrário do que diria Platão”, é o próprio mundo da matéria sensível.
[8] Idem, p. 363.
[9] CASTAÑEDA, C., op. cit., 195.
[10] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 382. Os experimentadores de chá de ayahuasca relatam as sensações de medo em suas mirações: “Tudo começou com uma sutil e agradável sensação percorrendo cada poro de minha pele. Foi então que apareceu uma profusão de linhas de força sobre a minha cabeça –  linhas que cortavam o espaço, dançando como feixes de  luz. Abri os olhos e a realidade exterior me pareceu normal, exceto por esse novo brilho que parecia emanar das coisas – minha percepção já não se interessava pelo mundo e sua solidez. Fechei os olhos e voltei a esse outro mundo fantasticamente iluminado. Como raios incandescentes, com cores que variavam entre violeta, azul e vermelho, eu era arrastado por uma enxurrada de  imagens, vindas não se sabia de onde, pois, com  certeza, não  faziam  parte  de  minhas  memórias. Nunca em minha vida eu havia vivenciado algo ao mesmo tempo tão  extraordinariamente fantástico e assustador. As  linhas agora se dirigiam a um  portal,  e  tudo  era  desenhado com uma precisão geométrica, por alguma  mão  invisível,  de  outra  inteligência,  sobrenatural. Tornei-me  um  observador consciente do meu Eu, que se dirigiu para o fim do portal. Um frio remexeu meu estômago: era o medo de fazer a travessia – o medo e a morte são figuras sempre presentes quando são encaradas. Finalmente, a expansão da consciência. Vi um cometa que se aproximava da Terra e ia explodir tudo. Fui lançado para fora, girando em outra dimensão,  como um planeta percorrendo uma órbita infinita em direção ao Sol. Por trás do fundo negro da minha percepção, havia essa luz tão intensa que fez do meu próprio corpo um campo irradiador de luz. Mas, assim, a morte passa como nesses momentos de frio na espinha.” (COSTA, Rafael Barroso Mendonça. “Ayahuasca: uma experiência estética”. Dissertação, Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia, 2009, pp. 20-21).

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