Criança máquina desejante




Em artigo antes mencionado, “Deleuze e os bebês”,[1] o autor apresenta o bebê como personagem conceitual, e vê nele a “forma mais profunda da relação de vida e pensamento”. No texto, o autor traduz o caráter de indeterminação do bebê, afirmando que “a vida (...) se encarna na figura do bebê”, uma vez que ele é inteiramente “singularidade pré-individual”.[2]
Ainda segundo o autor, pode-se afirmar que “todos os bebês se parecem, embora mostrem expressões que os atravessam inteiramente, como um sorriso ou uma careta”. Essas expressões são “a manifestação de uma vida que percorre e singulariza o bebê, sem individualizá-lo”; expressões que fazem dele algo “que pertence apenas ao sensível”.[3]
Sobre habitar este mundo de pura imanência, cabe uma questão: “Não será preciso guardar um mínimo de estratos, um mínimo de formas e de funções, um mínimo de sujeito"[4] para que deles pudéssemos extrair aquilo que, de algum modo, seria da ordem do acontecimento? Não devemos correr os riscos de permanecer na ideia de uma viagem psicodélica nas asas do plano de imanência.
Em “O que dizem as crianças”,[5] Deleuze aponta a libido como potência política de uma criança. Volta à questão do pequeno Hans e de outras crianças psicanalisadas (Freud (Hans), Melanie Klein (Richard) etc.). A libido impõe “trajetórias histórico-mundiais”.
O modo político de Deleuze/Guattari passa sempre por movimentos, aberturas, fugas, escapadas, idas para os espaços abertos, o mundo é o limite: a geografia em oposição à história, os mapas, e não os decalques, o rizoma contra a árvore, a erva daninha em meio às plantas domésticas, a grama, e não o arbusto, o animal selvagem em oposição ao animal domesticado em Édipo, o esquizofrênico no lugar do neurótico deitado no divã.
Dentre os exemplos, “os aborígines da Austrália unem itinerários nômades e viagens em sonho, que, juntos, compõem ‘um entremeado de percursos’, ‘num recorte do espaço e do tempo que é preciso ler como um mapa”.[6] Muito semelhante ao comportamento das crianças, que exploram os meios através de trajetos dinâmicos para aí construir mapas desses trajetos essenciais para a atividade psíquica.
A criança tem uma essência experimental desde o início. A atividade política de uma criança é a mesma já descrita, seu protocolo experimental consiste em se situar no lugar (platô) para depois explorar os espaços da vizinhança. Em oposição à política das crianças, encontram-se os pais (em nosso caso, a psicanálise), que têm o hábito de remeter a maioria dos trajetos e das linhas do mapa às figuras centradas papai-mamãe. Carlos Castañeda mostrou o quanto um “crivo” pode ser importante para o começo das experimentações, um lugar confortável que dá a perspectiva necessária do mundo que se quer explorar, mas o crivo tem a finalidade de meio.


[1] LECLERCQ, Stéfan. Deleuze et les bébés. Concepts. Número fora de série sobre Gilles Deleuze. Tradução de Tomas Tadeu da Silva. Paris: Sils Maria Édition, 2002, pp. 258-273. Disponível em: http://www.ufrgs.br/faced/tomaz/im_criancas.htm.
[2] Idem, p. 23.
[3] Idem, ibidem.
[4] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 330.
[5]  DELEUZE, G., Critique et clinique,  pp. 81-88.
[6] Idem, p. 83.

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