Potência mística II
O que esses experimentadores buscam? Não seria a dobra tão desejada? Se
há um lado de fora, é dele que os feiticeiros mexicanos estão teorizando. Tal
movimento, que decorre do fato de que essa dobra permite habitar o limite que
traça as bordas do que somos, permite situar-nos em uma linha instável e
arriscada, a linha lisa do lado de fora, na qual os contornos do familiar
(tonal), imaginável e representável diluem-se em contato com o desconhecido,
que é intraduzível e irrepresentável. “(...) É porque invoca verdadeiras
situações psíquicas, dentre as quais o pensamento encurralado procura uma saída
sutil.”[1]
Os feiticeiros buscam, talvez sem saber, uma perspectiva não binária e
dicotômica, pois, entre o lado de fora e o de dentro da dobra, encontramos
intercâmbios e inversões que desfazem as formas binárias por completo. Sob o efeito
do mescalito, fazendo a consciência fugir, é o lado de fora que abre em si
mesmo um lado de dentro, fazendo com que (um) outr,o que não é o mesmo dos
processos de subjetivação, instaure outra ordem, de singularização,
precipitando aquilo que faz diferir o ordenamento do sistema-percepção. A dobra
só avança variando, bifurcando-se, metamorfoseando-se. Nada tem a ver com
evolução; o experimentador não evolui nem regride, pois não há término de
processo, só há continuação.
Dobrar, desdobrar, redobrar, porque os processos são continuamente
penetrados por afectos de um lado e,
de outro, recuperados por alguma forma de poder. Eles estão dentro dos
processos esquizos; trata-se de uma política esquizofrênica. Territorializam,
desterritorializam e reterritorializam. Volta-se ao mundo tonal constantemente.
Não se pode ir ao mundo nagual por muito tempo sem os riscos de não poder
voltar mais.
O mesmo se passa em relação à desterritorialização absoluta que nos
precipita em espaços lisos de fluxos descodificados. Mas também não é o caso de
se cristalizar no mundo tonal; as próprias dobras podem converter-se em
obstáculos que impeçam cruzar a multiplicidade, a prolongação de suas linhas, a
produção de novidade. O corpo organizado é obstáculo, mas é indispensável para
que os sussurros do nagual cheguem até ele; o corpo deve seguir os sussurros do
nagual, mas, para ouvi-los, é necessário “diminuir o diálogo interior”, a fim
de ele possa fluir e expandir-se.
Eles se lançam em
operações de agrupamentos, agregações, composição, agenciamento, enfim, de
concreções sempre relativas ao heterogêneo: corpos, palavras, discursos,
animais, sons, juízos, inscrições técnicas, objetos que se mesclam, arranjam e
formalizam configurações. Dobraduras que incorporam sem totalizar e
internalizam sem unificar. Constituição de dobras descontínuas na forma de
plissês, superfícies rugosas e estriadas, efeitos de agenciamentos coletivos de
enunciação. Algo variável, produto de uma cadeia de conexões entre humanos,
artefatos técnicos, elementos da natureza (água, sol, terra, ar e fogo),
animais da floresta, o deserto, dispositivo de ação e pensamento.
A psicanálise não vê isso no caso de O Homem dos Lobos.
“A matilha dos lobos tornava-se também um enxame de abelhas, e ainda campo de
ânus, e coleção de buraquinhos e ulcerações finas (tema do contágio).” Outra
lógica para além da lógica interpretativa entra em cena edipiana e confunde os
dados da interpretação: seção, interseção, diagrama, um plano de consistência
que é o plano de imanência pensada no sentido geográfico. A cena que se abre no
Homem dos Lobos é um mapa, uma geografia, mas a psicanálise depende de uma
história: “(...) são também todos esses elementos heterogêneos que compunham
‘a’ multiplicidade de simbiose e de devir”.[1]
[1] DELEUZE, G., Cinema
2 – L’image-temps, p. 220.
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