Pequeno Hans II - de volta ao texto.


Nesse sentido, não se pode tornar o cavalo uma alegoria da representação; os afectos circulam o cavalo, com ele passam e o transformam. Ele entra em devir, há o devir-cavalo do pequeno Hans e há o devir do cavalo, um atravessando o outro. O problema político de Hans consiste em descobrir e entrar em relação dinâmica com esses afectos, ir até onde seu corpo pode e descobrir tudo o que pode sentir. Por isso o encontro é necessário, sair de casa é necessário, e os pais têm de ser o meio para que ele possa atravessar a rua em segurança.
 A criança diante do cavalo, enquanto experimentadora, deve perguntar a si mesma: o que pode um cavalo? O quanto pode o corpo do cavalo? Ela mesma deve questionar-se sobre o que pode em relação ao cavalo, experimentar graus de velocidade, repouso e lentidão ao entrar em relação com esse animal.
Esses são estados em que os sujeitos envolvidos se encontram, no “limiar místico do mundo das intensidades”. Não há nada de edipiano nesse processo; tudo isso é antiedipiano. É um programa de estratégia política para escapar à opressão que o complexo familiar lhe impõe com o apoio do “professor”. Ele é um pequeno guerreiro nômade. Todas as saídas foram barradas; só lhe restou uma “sutil saída” no devir-animal que viabilizou atravessar a rua e conquistar a praça. O devir-animal é esse agenciamento que se passa no homem por uma potência de afecto animal. Não se trata de uma semelhança, mas de um tipo de sobressalto animal, um devir. É a obsessão do capitão Ahab em busca da baleia. O destino final do capitão, amarrado ao corpo de Moby Dick, que cumpre seu devir.[1]
A psicanálise não se dá por vencida: toma o cavalo pela mãe, depois pelo pai e, finalmente, pelo fálus. A figura animal do cavalo fica reduzida à figura do pai. Como a psicanálise pôde edipianizar um animal como o cavalo? É possível edipianizar um cão, mas já se encontra dificuldade em fazer Édipo com um gato; muito pior será edipianizar um cavalo. É preciso transformar os antolhos no binóculo do pai, e o freio em seu bigode. A queda do cavalo e as chicotadas, a princípio, só aparecem como intensidades e afectos. É o que o corpo da criança pode experimentar diante da cena. Diz Deleuze:

Mais até que os adultos, as crianças resistem à pressão e à intoxicação psicanalíticas: Hans ou Richard o tomam com todo o humor de que são capazes. Porém, não conseguem resistir por muito tempo. Têm de guardar seus mapas, sob os quais só restaram fotos amareladas do pai-mãe.[2]

O que pode uma criança diante da imposição dos adultos? Com as interpretações, o cavalo perde a vibração das intensidades, o agenciamento maquínico desejante escapa para longe, a fim de dar lugar às interpretações estáticas. Família e psicanálise compõem uma ortodoxia que inibe todos os agenciamentos, impedindo os movimentos de desterritorialização da criança. Definir-se como um cavalo, traçar uma lista de afectos (ativos e passivos), traçar um linha de fuga, tudo isso na mistura com cavalo “(...) desempenha uma função de transformador, de conversor que constitui um mapa de intensidade. É sempre uma constelação afetiva”.[3]
As correlações da psicanálise do pai com o cavalo são o desconhecimento das relações do inconsciente com a física contemporânea. Desconhecimento completo dos mapas quânticos do inconsciente aberto a intensidades que distribui afetos que não derivam do corpo, mas que chegam a ele, “cuja ligação e valência constituem, a cada vez, a imagem do corpo, imagem sempre remanejável ou transformável em função das constelações afetivas que a determinam”.[4]  Deleuze/Guattari mostraram que o dito inconsciente não se limita a um reservatório de desejos incestuosos ou agressivos recalcados, mas que está aberto sobre a História, a sociedade e o cosmo,[5] inconsciente-mundo.
Hans deveria ser arrastado no devir-cavalo se não fosse a oposição dos pais. Ele é retirado da cena para perder a imagem, “a imagem não é só trajeto, mas devir (...). Os dois mapas, dos trajetos e dos devires, remetem um ao outro”.[6]


[1]  DELEUZE, G., Critique et clinique,  p. 100.
[2] Idem, p. 82.
[3] Idem, p. 84.
[4] Idem, p. 85.
[5] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe,  pp. 337-352.
[6] DELEUZE, G., Critique et clinique,  p. 85.

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