Molar e molecular – passagem do misticismo à filosofia
A
totalidade do ser é, pois, atravessada “pelas duas segmentaridades e ao mesmo
tempo: uma molar e outra molecular”.[1]
Tomamos o nagual em comparação ao
plano liso de segmentaridade molecular. Semelhante ao desterritorializado. E o tonal, como o território territorializado[2]
que passa por desterritorialização e reterritorialização o tempo todo: máquinas
desejantes e máquinas técnicas e sociais se alternando sem interrupção. O tonal em todos nós. Mas a totalidade do
ser inclui o nagual que está logo
ali. Somos uma ilha em meio a eternidade do nagual.
O poder paira sobre a ilha tonal. “No momento do nascimento, e durante
algum tempo depois, somos todos nagual”.
A multiplicidade é de dois níveis, qualitativa e estatística. “Mas são
inseparáveis [...] porque coexistem, passam uma para a outra, seguindo
diferentes figuras como nos primitivos ou em nós”.[3]
Percebemos figuras de conjunto dentro das limitações de nosso tonal pessoal. Andamos de tal maneira
dentro de nossas “roupas”, decoramos gestos, maneira de falar e pensar até ao
ponto de uma conformação quando todo
mundo se faz alma coletiva. Nada disso impede de termos “micropercepções
inconsciente”. Nada garante que o tonal
não seja invadido por linhas de nagual.
Que tomamos por microprocessualidades e comece a trabalhar uma na outra,
desfazendo e intercambiando segmentaridades. Chamam de “uma micropolítica de
percepções”. Vemos isso acontecer em meio aos cortes binários. Nenhum
julgamento moral, por mais terrível que fosse, mesmo a destruição de Sodoma e Gomorra não pôde impedir que uma multiplicidade saltasse para fora confundindo a lei binária
da sexualidade. “... Os dois sexos remetem a múltiplas combinações moleculares
que põem em jogo não só o homem na mulher e a mulher no homem, mas a relação de
cada um no outro com o animal, a planta”.[4]
Reintroduzimos a sabedoria indígena, “é preciso ver a totalidade” para perceber
a junção molar e molecular agindo ao mesmo tempo. A astronomia pode ser uma ciência maior, mas foi através de
micropercepções que Copérnico e Galileu descentram a Terra. A física de Newton
não andaria sem o olhar voltado para o micro do micro (divisibilidade do átomo)
de Heisenberg, Bohr, Prigogine etc. E não chegaríamos à física atual.
Micropercepções partem sempre de organizações molares. Numa conversa entre dois, há todo um jogo
molar-molecular: olhares, gestos, maneirismos, seduções, um extenso jogo de
adaptadores de ego em ação. Sinais reconhecidos de produção molar e signos
“estranhos” subentendidos num gesto de boca, franzir de testa, pressão de
lábios, etc.
[1] DELEUZE, G. e GUATTARI, F. Mille Plateaux, p. 260.
[2] “A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que
ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se
organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros
existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um
espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se
sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação
fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais
vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de
investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos”
(GUATTARI/ROLNIK,
1986:323).
[3]
Idem, p. 90.
[4]
Idem, p. 91.
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