Devires na literatura VI


Kafka usa as grandes estruturas macropolíticas (O processo, O castelo), as relações familiares de Carta ao pai e Metamorfose, simplesmente para dizer: “É assim que isso me parece.”. Os personagens surgem excluídos do mundo, social e étnico; perdem-se na condição de sujeitos de deveres; tal inciência cria neles uma má consciência; portanto, sentindo-se devedores, não reivindicam seus direitos. Uma vez que não têm direitos, não devem estar certos em coisa alguma; “o fato de não estar certo aumenta a culpa, que faz da autocomiseração um tormento moral, tormento moral que o coloca fora do mundo”, eis a roda de suplício do homem.[1] Os personagens de Kafka tentam escapar desse “suplício funesto”, mas é o autor que salva a si mesmo.
Em Metamorfose, Kafka nos lança em um universo das precipitações em que “o Eu não passa de personagens cujos gestos e emoções estão dessubjetivados...”.[2] É que Kafka está tomado por afecto, “pois o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica; ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu”.[3]
Eis o que apavora, o indizível, a começar pelo inseto que, segundo a percepção de Modesto Carone, “provoca no leitor um efeito de estranhamento manifestado pelo arrepio ou pelo riso amarelo”.[4] A fuga em uma forma animal pode ser do personagem, mas o devir-animal é do autor, que se coloca no lugar do narrador, experimenta as intensidades de passagem homem-animal.
A metamorfose é vista como uma deformação da identidade de filho e membro de uma família, o que, ao mesmo tempo, dissolve uma identidade que aparece visível em uma menção “textual ao estado atual de Gregor”.[5] Esse lugar escapa à edipianização. Não se edipianiza um inseto. Só se pode dizer “meu” em relação a um cãozinho, a um gatinho mimado. A família passa a se organizar para viver com um inseto que “é empurrado para o isolamento e a solidão”, para, finalmente, entrar em exclusão.[6]
A comunicação da família exclui Gregor, e todos passam a se referir a ele com sentidos indefinidos do tipo aquela “coisa”. A irmã de Gregor, dirigindo-se ao pai, fala da infelicidade da família: “Você precisa livrar-se da ideia de que ‘isso’ seja Gregor.” O pronome da terceira pessoa do singular, “Ele”, deixa de ser pronunciado para ser substituído pelo indefinido “isso”. É a necessidade de se relacionar com o “isso”, pois a família é arrastada por uma desterritorialização; o “isso” é sombrio, é um anômalo dentro de casa. Curiosamente, tem o mesmo significado e sentido do inconsciente, de máquina desejante,[7] o “isso” que se liga a uma máquina literária.
Carone ressalta um fato intrigante que se passa na novela: Gregor se transforma em um animal em sua aparência, tem um casco nas costas, perninhas e uma barriga amarela, mas, por dentro, Gregor pensa e sente como um menino, como ele mesmo. “O relato objetivo comprova que a consciência do metamorfoseado continua sendo humana, inteiramente apta a captar e compreender o que se passa no meio ambiente”, mas, por outro lado, ninguém na família pode imaginar que isso esteja se passando. Ou seja, na metamorfose, Kafka mostra o encontro de uma dupla intensidade de dois reinos, devir-animal. Nesse sentido, Kafka é um experimentador que, por meio de seus personagens, vivencia toda espécie de devires.


A arma literária expande Édipo propositalmente para denunciar “seu uso perverso e paranoico” – nesse caso, já uma subversão da ordem. Nas bifurcações do Covil, em suas estreitas passagens e distribuição de víveres, já há “toda uma micropolítica do desejo, dos impasses e das saídas, das submissões e das retificações”.[1] Ampliar Édipo ao nível exagerado do absurdo é, ao mesmo tempo, desmesurá-lo na comédia. De maneira singular, Kafka está dizendo que embriagar-se nos personagens da literatura é a grande escapada.


[1] DELEUZE e GUATTARI. Kafka: para uma literatura menor. Tradução de Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 30.



[1] ANDERS, G, op. cit., pp. 39-40.
[2] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 436.
[3] Idem, p. 293.
[4] CARONE, Modesto, op. cit., p. 19.
[5] Idem, p. 20.
[6] Idem, ibidem.
[7] DELEUZE, G. e GUATTARI, F., L’Anti-Oedipe,  p. 7.

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