Devires na literatura III


Os “segmentos parciais” territorializam e, simultaneamente, desterritorializam. Tal movimento lança os indivíduos na dúvida relativa ao pertencimento a um lugar e em outra dúvida, sobre a competência de exercer seu ofício. Uma vida marcada por processos sem-fim gera a falsa promessa teológica do galardão final. Consequentemente, autoacumulação de culpa de uma consciência que anda em círculos – o que Günter Anders denomina de “Carrossel de Suplícios”. Como diz Anders, “quem não sabe a que lugar pertence também não sabe com quem tem obrigações”.
O que leva o homem à “fome moral (isto é, à necessidade que ele tem de um espaço limitado de seus deveres)” faz dele um buscador de segurança condizente com seus traços. Fatalmente, busca-se um rebanho guiado com um pastor que dê orientações sobre o caminho a ser seguido. São as condições que definem os traços identitários do processo de subjetivação, suas cristalizações inconscientes e sua cultura, construída numa trama de relações com o outro que já não é mais exclusivamente o nome do pai, mas trabalho ao qual o sujeito se submete, a religiosidade, a educação que o determina como trabalhador da repartição, a família etc. De forma ampla, tudo que envolve o ambiente em que vive, e as tecnologias com as quais convive, seu cotidiano, suas preferências.
Estamos em um plano político, mas propriamente em uma micropolítica do desejo. Entramos em Kafka pela porta de Deleuze/Guattari. Por essas lentes, veem-se os personagens de Kafka incomunicáveis em seu isolamento e culpados por não sei o quê.

A consciência insegura da competência de seus deveres chega, através da insegurança, a um pânico de consciência que se acumula automaticamente e, por fim, precisa convencer o atormentado de que ele, de alguma forma, deve ter pecado.[1]

Tanto na realidade familiar quanto no mundo do trabalho, é o desejo que se encontra submetido e comunica sua submissão na culpa e no castigo, temas recorrentes em Kafka: culpa, isolamento e incomunicabilidade. A culpa é o comércio da neurose, que leva o culpado à submissão e à vergonha.
Em O processo, o homem não sabe a quem pertence, nem a quem deve obrigações. O sentimento de culpa se traduz por uma estranha desconfiança de se sentir devedor. Os personagens de Kafka sofrem desse martírio moral. Em seu realismo, Kafka não nega este mundo, mas o afirma. Registra a miséria de maneira tal que a “salvação” possa ser operada via obra de arte – nesse caso, literária.


[1] ANDERS, G. Kafka: pró e contra. 2 ed. São Paulo: Cosac e Naify, 2007, p. 19.

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