A leitura II


Podemos colocar toda a confiança em nossos sentidos e faculdades cognoscentes? O empirismo colocou dúvidas quanto ao Eu cognoscente, ele próprio é duvidoso. Até de nós mesmos nós só conhecemos aquilo que nos aparece. Em nosso caso, não se trata de dissolver todo o edifício do conhecimento, seria uma pretensão de mais um universal. Nesse breve espaço de nossa tese, nossa questão é o sujeito. Muito embora ele esteja subsumido na universalidade da estrutura do pensamento humano. Ou seja, como diz Kant, não existe uma realidade acima de nós ou fora de nós que julgue a veracidade ou falsidade de nossas ideias. É a nossa própria estrutura que, por ser universal, por ser idêntica em todos os homens, garante a validade desses conhecimentos. Mas garante a sua validade e não a sua realidade. Não se pode falar mais de realidade, só existem os fenômenos e os juízos válidos. O que é válido? Tudo o que confere com a estrutura universal da mente humana. Daí em diante, tudo o que podemos garantir é que a realidade fique presa dentro desse cerco da razão. Não importa se Deus existe ou não existe, mas que se se tenha uma religião dentro dos limites da pura razão. Não importa se exista um Real Real para além do simbólico ou do imaginário contanto que tudo se incruste aos limites da estrutura do pensamento. Mas vamos continuar fingindo que Deus exista, essa crença oferece um estatuto de nobreza ao homem. Além dessa convivência infantil, já que nos limites da razão não se pode provar a existência de Deus, fica-se somente com a estrutura da mente humana, e essa passa a ser o juiz supremo de todas as coisas.“A descoberta essencial é que a faculdade de conhecer é legisladora ou, mais precisamente, que há algo de legislador na faculdade de conhecer”[1]. Deleuze inclui que há igualmente algo legislador na faculdade de desejar. “Assim, o ser dotado de razão descobre em si novos poderes. A primeira coisa que a revolução copernicana nos ensina é que somos nós que comandamos”[2]. Não saímos dos fenômenos, passados pela estrutura de nossa mente, eles são reais, até mesmo os delírios são reais. Mas delirando ou não, os fenômenos são produtos de nossa atividade. Mas Kant vai nos obrigar a colocar aspas em tudo que se encontrar fora dos limites da razão. Deleuze sabe dessa questão, somos sujeitos passivos e receptivos, as coisas que se nos demonstram não são objetos em si. “mas como o serão, sabendo-se que não somos nós que os produzimos? Como é que um sujeito passivo pode ter, por outro lado, uma faculdade ativa de tal ordem que as afecções que ele experimenta sejam necessariamente submetidas a esta faculdade?”.[3] O que nos leva a interiorizar a questão do sujeito e do objeto, o objeto é o próprio sujeito cognoscente. Toda a análise se concentra nas estruturas racionais do sujeito cognoscente, através dessa análise que se deve chegar à validade do conhecimento, dela e através dela mesma. O objeto deixa de ser importante, ele pode existir ou não.
Mas não podemos nos afastar muito da metáfora do espelho. Ela nos é útil nessa relação que se perdeu. Saímos de um sujeito pensante para uma máquina-sujeito por onde o pensamento funciona. Cabe uma pergunta: esse sujeito cognoscente é sempre e unilateralmente sujeito ou ele é também objeto? Como ele poderia chegar ao conhecimento de sua própria estrutura se não fosse também objeto de sua própria observação? Vejamos a fórmula: penso pensando-me o objeto que sou eu mesmo que pensa. Como posso representar a mim mesmo para tornando-me objeto de pensamento possa me conhecer? Não é o espelho que retorna na fase adulta? A imagem do espelho é kantiana antes de ser lacaniana guardando as proporções de cada um. A questão aqui seria a de mirar-se no espelho fazendo a abstração como se a imagem não fosse refletida pelo espelho. Embora a imagem reflita uma dada realidade, o observador não deve se interessar por ela. Como pode ignorar o espelho e ficar apenas com a imagem? De onde vem a imagem se não do espelho? Existe a imagem e a imagem do espelho. Essa não precisa refletir nada, mas ainda assim estará lá. Existe o espelho e a imagem que ele pode refletir. No caso da estrutura cognoscente, o mundo é bidimensional no próprio sujeito porque a existência objetiva do objeto não precisa se encontra no espelho, mas é condição para que ele seja sujeito. O sujeito se interioriza no objeto e se funde. É preciso garantir que a estrutura cognitiva seja capaz de se conhecer mesmo sabendo que ela seja refletida para o sujeito cognoscente que é ela mesma, mas ignorando num faz de conta, que essa imagem de retorno esteja aí determinando tal certeza. Ou seja, toda a minha construção se encontra calcada num fenômeno que produzo em mim de mim mesmo. Não posso simplesmente ignorar a imagem que tenho do espelho, no máximo isso pode funcionar nos termos de uma foraclusão que já seria um mecanismo de defesa. Resumindo, quando se olha no espelho, percebe-se que a imagem refletida daí é totalmente determinada pela estrutura do espelho. Quando se examina a estrutura da mente humana se está examinando como se fosse um espelho. Não se pode dizer que a imagem refletida e examinada aqui não dependa da estrutura do objeto que faz o reflexo, nesse caso, a estrutura do espelho. Para manter essa relação do espelho, a mente humana é o espelho no qual se refletem os fenômenos, e eles adquirem uma forma que é determinada pela estrutura da própria mente, assim como a imagem no espelho dependem das propriedades objetivas (refletantes) do próprio espelho. A imagem não é determinada só pelo espelho, mas também pelo que o sujeito infere no espelho. Existe a estrutura do espelho e a estrutura daquilo que se mostra no espelho, nem um nem outro isoladamente pode determinar totalmente o outro. O indivíduo nele mesmo é composto do aspecto fenomênico e do aspecto substância. Sentir frio é um fenômeno. E como o frio chega aos sentidos? É outro fenômeno? Vamos ter que ligar um fenômeno a outro numa cadeia que chega ao Real. Mas a questão não é a de organizar o real dentro de uma estrutura universal? Nesse caso, é Kant que nos põe diante do universo do Real que nos chega à mente em forma caótica, são as sínteses que organizam o caos. Não esse também o trabalho da vida de Freud? Criar um aparato topológico que organizasse as forças pulsionais? Parece ser esse também todo o projeto platônico, o de submeter o mundo sensível ao mundo inteligível da Ideias-forma. O que aterroriza é o fato de que seja possível não haver uma ordem no universo, e que o sujeito, qualquer sujeito só é erigido por conta de uma necessidade proveniente da angústia de que ele mesmo se encontra como parte desse universo que se desloca inexoravelmente para a desordem. A ordem é dada pelo sujeito oscilante que contempla. É imperioso que haja sujeito. Mas o sujeito que se percebe percebendo-se, nesse exato momento, ele se transforma em quê? Já disse que ele se transforma. É um fenômeno de passagens. E quando ele percebe esse dado fenomênico, sendo sujeito-eu, não é isso também fenomênico? Onde vai parar essa sucessão? Na des-ordem. Por isso, o sujeito é desde a des-ordem. O sujeito constrói um objeto fenomênico atrás do outro, sabe que sabe que aquilo que percebe é um fenômeno de um fenômeno. Um espelho atrás do outro numa cadeia infindável. As cavernas platônicas. Não se pode dizer o que se está vendo porque se fecharia o sistema. Existe um homem, mas a realidade desse homem não se encontra aqui, é um outro homem que existe no mundo das ideias. Entre eles só existe uma semelhança, e essa semelhança não é nem um nem outro, é um terceiro homem. Tem um Eu, tem um modelo no mundo das Ideias e tem um terceiro que é entre o Eu e o Outro formando um elo de semelhança. Mas entre esse Eu e o Outro também tem que ter outro ainda. Nessa cadeia ininterrupta se perderia a possibilidade de se obter um sujeito absoluto. Ou de se ter um sujeito que não fosse também objeto. O sujeito absoluto seria aquele que só emitisse informações sem jamais recebê-las. O que seria uma forma de inexistência de ambos. É impossível a existência de um corpo que afeta sem jamais sofrer uma afecção qualquer do outro que o afeta.



[1] DELEUZE, G. A filosofia crítica de Kant. Tr. Germiniano Franco. Lisboa: Edições 70, 2009, p.22.
[2] Idem.
[3] Idem, p. 23.

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