Plano de imanência
Em O que é a filosofia?, ao estabelecer a distinção entre a
história da filosofia e a filosofia propriamente, a dupla define a filosofia
como uma arte de criar conceitos. E, para criar conceito, é necessário que se
remetam a um plano de imanência que vem povoá-los de intensidades. Não podemos
pensar um plano de imanência; só podemos chegar a ele pela intuição.
Criar conceitos, portanto, é uma tarefa muito arriscada, pois o plano
de imanência é um plano pré-filosófico, mas nem por isso deixa de ser indispensável
à filosofia. Ao se trabalhar a criação do conceito, já se está no plano de
imanência. Nem mesmo a filosofia da transcendência escapa aos efeitos de
virtualização do plano; cria-se uma representação, um universal – ainda que
para além do plano –, mas retiram-se dele as atualizações virtuais que lhe
povoam de intensidades. Mesmo a transcendência se encontra sobre a velocidade
absoluta do plano.
O pensamento é um intempestivo sob um tempo intempestivo, nem presente,
nem passado, nem futuro; o clarão de um instante, um acontecimento. O
pensamento se encontra no meio, entre a intuição (equipamento mental), o
cérebro e o conceito. De uma imagem do pensamento que o pensamento suporia
acerca de si mesmo, Deleuze constitui um pensamento sem imagem, através da ruptura
introduzida por uma linha abstrata, pela forma pura e vazia do tempo, que não
se confunde com a memória, nem com o instante presente; sai em busca do futuro
no devir, na coalescência virtual que o intempestivo produz com lençóis de
memória, quantas de futuros
possíveis, mesmo na presença do circuito mais contraído entre o virtual e o
atual, isto é, o instante atual, paradoxal, pois o presente que é, é, também, o
presente que passa.[1]
Os autores dizem que o tempo da filosofia é estratigráfico porque se encontra
sob camadas de tempos diversos que nele coexistem. Plano de imanência ou de
consistência, em que os conceitos devem ser criados. “O plano é povoado apenas
por acontecimentos ou devires, e cada conceito é a construção de um
acontecimento sobre o plano.”[2]
Não se trata de organizar uma
coisa sobre a outra, o que seria fazer história: arrumar as coisas, uma ao lado
da outra, para que as palavras se ajustem às ideias. Os conceitos podem recair
sobre a história, mas não podem advir dela. A criação do conceito é da ordem do
acontecimento, que rasga a história “numa nuvem a-histórica, eis o conceito”.
Esse é o tempo da filosofia, o devir que rasga a história de uma ponta
à outra. Dizem Deleuze/Guattari: “a filosofia é devir, não história; é
coexistência de planos, não de sistemas (...)”.[3]
Devir não é história, como define Deleuze: “Devir é nunca imitar, nem fazer
como, nem se conformar a um modelo, seja de justiça ou de verdade”. Não há no
devir um ponto de partida de onde se pretende começar, menos ainda uma previsão
de chegada.
A pergunta ‘o que você devém?’ é
particularmente estúpida. Pois, à medida que alguém vai se transformando,
aquilo em que ele se transforma muda tanto quanto ele próprio. Os devires não
são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de
evolução a-paralela, de núpcias entre dois reinos.[4]
A história só pode definir o conjunto de condições em que as coisas
aconteceram – por meios recentes que sejam –, “por meios dos quais nos
desviamos do devir”.[5]
Ao definir o pensamento da imanência, os autores de “O que é a filosofia?” querem
nos dizer: ficamos entre tempo e entretempo; história ou criação; sistema ou
plano de imanência, e não há desvio que valha uma vez por todas. Não reduzamos
a filosofia à sua própria história, pois a filosofia é precisamente o que não
cessa de se arrancar da história para criar novos conceitos.
Então, o que nos falta para escapar ao intolerável? Fugir dos consensos
da história, das contemplações, das comunicações, dos valores ideais. Como dizem
Deleuze/Guattari, falta-nos criar resistência ao presente. Como insistem
Negri/Hardt: “A criação de conceitos faz apelo por si mesma a uma forma futura,
invoca uma nova terra e um povo que não existe ainda”.[1]
Esse povo e essa terra não se encontram nas democracias. As democracias
são de uma maioria estatística, e esse povo e essa terra porvir são de um
devir-minoritário que, constantemente, se desvia do presente, escapa no
entretempo, entra em devir, traça linhas de fuga que produzem rupturas na
história. A multidão da democracia é arrastada nessa nuvem intempestiva pelos
devires que se agitam em seu interior: há um devir-minoritário no seio de toda
maioria democrática que a arrasta rumo a uma nova terra.
O porvir não é um futuro da história, mas, como percebem
Deleuze/Guattari, o “intensivo ou o intempestivo – não um instante, que está no
tempo, mas um entretempo, um devir”.[2]
[1] DELEUZE, G. L’Image-Temps – Cinema 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985, pp. 76-164.
[2] ZOURABICHVILI, F., op. cit., p. 18.
[3] DELEUZE, G. e
GUATTARI, F., Qu’est-ce que La
philosophie?, p. 58.
[4] DELEUZE, G e PARNET,
C. Dialogues. Paris: Flamarion, 1977.
[5] DELEUZE, G. e
GUATTARI, F., Qu’est-ce que La
philosophie?, p. 92.
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