O combate II
O juízo se constrói sobre os sonhos que não submetem a realidade ao
conhecimento. Sonhos que não geram combate nem enfrentamento com a realidade;
são sonhos vazios. Daí a primeira questão de enfrentamento do juízo consistir
em saber se estamos dormindo, de saber se estamos sonhando. Assim como o sonho
das rodas de Ezequiel,[1]
os sonhos infindáveis de João de Patmos no Apocalipse, sonhos de uma nova terra,
onde nem a morte, nem a dor ou a lembrança de coisa alguma do passado
subsistirá: “(...) é o sonho que encerra a vida nessas formas em nome das quais
julgamos. O sonho ergue os muros, nutri-se da morte e suscita as sombras de
todas as coisas do mundo, sombras de nós mesmos.”[2]
Para combater o juízo,
é preciso ter insônia e sonhar.
Como Kafka, sonhar acordado, atravessar noites de insônia, porém
permanecer sonhando. O sonho tem de ser um combate lúcido, e o mesmo é válido
para a embriaguez. Repudia-se o sono do juízo para entrar em estados de
embriaguez, de sonhos sóbrios. O combate ao juízo denuncia a imobilidade dos
sonhos que são, ao mesmo tempo, dirigidos demais, governados demais. São sonhos
de um organismo, pois o sistema de juízo se faz sobre um corpo demasiadamente
organizado. Daí haver escolas de interpretação de sonhos. Os especialistas em
interpretar sonhos (sacerdotes, psicanalistas etc.) “prontificam-se também a
formar tribunais que julgam e punem”.[3]
Nos sonhos dos profetas, nas visões noturnas de João, “assentam-se os
juízes” e começa o julgamento. Da passagem da crueldade para o sistema de juízo,
há todo o processo de organização do corpo. No primeiro caso, há combate, jogo
de forças, afetos, dor e crueldade. No segundo, há dominação das forças sob o
sistema de juízo, portanto o sonho é produto de um sono, linha de fuga passiva.
Por isso no combate “reencontra-se o sonho, já não como um sonho de sono (...),
mas como sonho de insônia”.[4]
Toma-se a obra de Kafka como exemplo de sonhos sem sono porque nela o
autor é arrastado até o limite da insônia, sem perder a conexão com as questões
do mundo real. É o combate que o guerreiro da insônia não abandona. Se o
sistema físico de crueldade opõe-se à doutrina teológica do juízo, é preciso
encontrar o ponto em que há uma organização em nível do corpo que faz tanto o
sono quanto o sonho atingirem determinações de ordenamento e suspensão da
realidade.
É que só pode haver juízo quando há organização dos corpos. O juízo só
age sobre órgãos e organização. “Os órgãos são juízes e julgados, e o juízo de Deus
é precisamente o poder de organizar o infinito”,[5]
o que faz de Deus um grande burocrata paranoico.
O cristianismo do povo tem tudo para alcançar o ideal do sistema de
juízo universal. São Paulo combateu o império romano, que via o cristianismo
como uma grande ameaça, mas foi exatamente em nome do cristianismo que o
romanismo cristão triunfou.
[1] A visão das “rodas de Ezequiel” surge de duas formas: no Capítulo
I e no Capítulo X do livro que leva seu nome. Em Ezequiel, o juízo aparece como
“inevitável”. Deus é vingativo, “a alma que pecar”, ele enviará para a terra,
fome e sede. Mesmo que seja uma alma, todos vão perecer. É juízo sobre a casa
de Israel, sobre os líderes pecadores, sobre os inimigos de seu povo. As visões
de Ezequiel são visões de aviso de juízo.
[2] DELEUZE, G., Critique et clinique, p. 162.
[3] Idem, ibidem.
[4] Idem, p.163.
[5] DELEUZE, G., Critique
et clinique, p.167.
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