O efeito intempestivo sobre o sujeito




Perguntar-se-á pelo sujeito na filosofia da diferença, se há espaço para um sujeito como uma figura triunfal do tipo “Eu” da ficção cartesiana,[1] “Eu” com estatuto de princípio, sobre o qual devem fundar-se a moral, o direito, o poder. Há um sujeito, mas absolutamente descentrado e impossível de funcionar como princípio fundador. Como um sujeito fixo poderia suportar um tempo intempestivo? O sujeito, nesse caso, só poderia ser um efeito, e não a causa dos fenômenos sociais e políticos que, tomando como base o desejo, encontram-se além da razão humana.
Não há sujeito senão “do desejo”, resultado da pura articulação com as vicissitudes dos fluxos que atravessam esses sujeitos. Pode-se falar de sujeito em Deleuze/Guattari, e essa categoria tem de ser atribuída às “máquinas abstratas transpessoais”. São os efeitos heterogêneos dessas máquinas que, atuando sobre pessoas e coisas, impõem implicações adversas que repercutem nas individualidades.
Zourabichvili lembra que “o motor abstrato do pensamento deleuziano é a ‘articulação do externo’ (heterogeneidade, exterioridade das relações) e de implicação (dobra, envolvimento-desenvolvimento, complicação virtual)”.[2]
As máquinas abstratas são planos de linhas aleatórias que estruturam as pessoas em suas inserções no campo social. São os simulacros que restaram da terceira síntese do tempo e, agora, derivados de um agregado social maior e portadores de uma potência positiva e destruidora de ícones que se transformam em sujeitos de devires incessantes. São os arranjos de produção coletiva de enunciação que se juntam aos arranjos maquínicos dos corpos que são antes da produção de qualquer sujeito. Esses arranjos operam individualidade, mas apenas de forma tangencial, como linha de causalidade de tantas outras.
É nesse universo de devir-maquínico do sujeito que Guattari se expressa com efetiva intervenção como “força criativa de expressão” ou, em outra situação, com agenciamentos coletivos de enunciação.[3] “(...) A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação (...).” Em consequência, os sujeitos-indivíduos “são o resultado de uma produção de massa”.[4]
Desde o Intempestivo de Nietzsche, o sujeito passou a ser fonte de nada. Os sujeitos não são os criadores do devir-social, mas, ao contrário, os devires de toda ordem produzem sujeitos não universais, embora singulares de curta duração. As vanguardas de bandeiras políticas e as retaguardas sindicais e de partidos são, antes, afetadas de longe por demônios desconhecidos. Não há projetos sólidos de sujeitos universais; tudo é imprevisto em um devir-imtempestivo. Os dados são lançados no destino de cada um, ao amor fati.
No caso de Deleuze/Guattari, só é possível falar de um sujeito-máquina. Como diz Massumi: “Máquina abstrata transpessoal, conjunto de estratégias operando na natureza e espalhadas por todo o campo social. É todo um composto de uma infinidade de linhas causas em inúmeros planos, todas fraturadas ao acaso.”[5]

Uma máquina abstrata é inseparável de um devir maquínico do sujeito. O sujeito é sempre dócil, pois resulta da interação entre pessoas e linhas, interação entre formações molares e formações moleculares. As formações molares estão na base da produção de simulacros, mas tais simulacros não têm mais o valor negativo de antes. Em Lógica do sentido, o simulacro é uma potência positiva, não uma cópia degradada, ele “nega tanto o original quanto a cópia, tanto o modelo quanto a reprodução”.[1]
            É inegável que os pensamentos conscientes que sustentam o sujeito sejam arrastados por conteúdos inconscientes moleculares. “Pensamento consciente e intenções (inconscientes) têm participação nesse processo, mas apenas como uma linha de causalidade entre muitas operando no vazio fractal.”[2] O que resta de sujeito é um presságio. Vemos o sujeito das grandes causas ideológicas até o ponto em que o desejo volta-se contra suas próprias causas e o transforma em um sujeito cambaleante.



[1] DELEUZE, G., Logique du sens,  p. 302.
[2] Idem, p. 28.




[1] Para Deleuze, o Cogito marca o primeiro momento em que o sujeito, empenhando-se até o fim na busca de uma verdade para satisfazer a exigência racional de evidência absoluta, encontra seu caminho: o cogito como verdade inaugural. No limite, parece possível dizer, com Descartes, que, se “todos os que se aplicam seriamente na realização do bom-senso” pelo menos uma vez na vida fizerem essa redução, chegarão ao cogito como verdade inaugural. O cogito pode ser tomado como uma constatação de fato. E, de fato, o autor constata que, pondo “tudo” aquilo acerca do qual se pudesse imaginar (pensar) a menor dúvida  em  suspenso, restar-lhe-ia somente o “eu que pensava” como verdade que resiste ao inquérito, como “alguma coisa” verdadeiramente  existente. Assim, tal como apontado em Descartes, em Kant também parece possível identificar, de acordo com Deleuze, a atuação dos postulados da imagem dogmática do pensamento em suas  diversas  formas. Buscando a presença desses na doutrina kantiana, ver-se-á que, pelo  primeiro, o  Cogitatio natura universalis, o  pensador  assume, de forma  implícita, a afeição do pensamento natural para com a verdade, mediante dois aspectos: uma boa vontade daquele que pensa, aliada a uma natureza reta do próprio pensamento. Ou seja, parte-se da  ideia  de que  todo mundo  saiba, de  forma  implícita, o que pensar quer dizer, haja vista todos pensarem naturalmente. Vê-se aqui a manifestação da representação como instância fundamental da imagem do pensamento. Ela aparece aqui sob sua forma mais geral, fundada no pressuposto do senso comum como natureza  reta do pensamento e boa vontade do pensador. (Cf. Capítulo I, “Relação das faculdades na crítica da razão pura”. In: DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Tradução de Geminiano Franco. Lisboa: Edições 70, 1987, pp.19-34.)
[2]  ZOURABICHVILI, F. Deleuze – Une philosophie de L’évémaior enement. Paris: PUF, 1994, p. 127.
[3]  GUATTARI, F. e ROLNIK, S., Micropolítica: cartografias do desejo, op. cit.
[4] Idem, p. 31.
[5]  MASSUMI, B. A user’s guide to capitalism and schizophrenia: deviations from Deleuze and Guattari. London, England: Cambridge, 1993, p. 26.

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